Sucesso de público

domingo, 30 de dezembro de 2012

Quando a maior aventura é a sobrevivência - Sobre "As aventuras de Pi"

  
  Sabe a boa sensação de ser completamente surpreendido por um filme? Fazer uma escolha aleatória no jornal, cujos parâmetros utilizados foram: horário mais distante e local mais próximo, torcer um pouco o nariz para o gênero (aventura), mas, ainda assim, seguir em frente e ser "soterrado" por avalanche de boas surpresas e informações?  "As Aventuras de Pi" (EUA, 2012) foi a minha grata e, provavelmente, derradeira, grande surpresa de 2012.

  Porque fui completamente incauta, desavisada e mal informada assistir ao comovente filme de Ang Lee, eventualmente a falta de informação pode ser benéfica, porque não cria expectativas, preconceitos e, ainda, possibilita que o novo nos tome pela mão e nos leve ao lugar que precisaríamos mesmo conhecer, sem ao menos termos ideia desta nossa própria necessidade. Primeiro, não conhecia a estória "original" do romance de Yann Martel (A Vida de Pi, 2001), mas já conhecia o imbróglio que o autor canadense havia criado, quando lançou - e foi premiado - o livro com um mote muito semelhante ao do brasileiro Moacyr Scliar (um naúfrago que disputa lugar em um bote com um tigre, na obra de Martel, e um também naúfrago que também disputa um lugar em um bote, só que com um jaguar, em Scliar. Apesar da semelhança muito destacada o escritor gaúcho, falecido em 2011, elegantemente não processou Martel e aparentemente deu-se por satisfeito com a agradecimento do autor canadense, que passou a vir nas edições posteriores a descoberta da "inspiração". Enfim, o autor canadense admitiu que leu e "inspirou-se" em Scliar. No mais, tigres, jaguares, botes à parte, como filme a estória é muito envolvente.

  A narrativa tem seu início em uma cozinha comum, simples, familiar, tradicional das sociedades norte americanas, logo somos informados no próprio diálogo, entre os dois personagens (o que narra e o ouvinte da estória) que ambos estão no Canadá. O narrador é indiano e o ouvinte é um escritor canadense, que está em busca de uma boa estória para seu novo romance e, por indicação de um conhecido comum a ambos, procura Pi Patel. A única informação que possui é que Pi tem uma grande história e é partir desta necessidade/curiosidade do escritor, que somos também convidados a conhecer a história da vida de Pi Patel. 

  A estória inicia-se com a explicação para o nome de Pi, cuja escolha não fora um apreço paterno pela matématica, muito embora o personagem demonstre logo cedo sua vocação para "virar o jogo", relacionando o seu nome com o número irracional, conhecido por Pi. Só o  menino indiano já é um grande personagem, cheio de matizes, com questionamentos muito profundos, uma busca muito peculiar para questões existenciais, incomum para sua idade. Nasce em uma família com herança hindu (a mãe cultiva a religião mais como forma de não perder suas raízes, embora o pai de Pi, seja completamente discrente de qualquer religiosidade), desenvolve um amor pela história de Cristo, que conhece de maneira completamente casual e, ainda, sente o chamado de Alá, quando passa por uma mesquita na Índia. Mais tarde, na literatura (nas palavras, segundo ele) encontrará o consolo para suas angústias adolescentes e se aproximará  daquilo aparentemente mais racional, vontade do seu próprio pai. Pi Patel é um personagem sensível, que embora embuído de uma curiosidade inata, em função da superproteção familiar e do ambiente cheio de restrições e segurança onde cresceu, desconhece experiências mais desafiadoras e diversas. Mesmo a sua relação com os animais, do zoológico do pai, onde cresceu, é sempre intermediada e quaisquer laços são interrompidos, mesmo antes de serem estabelecidos, para "preservar" Pi, das possíveis surpresas.

  A vida de Pi, no entanto, sofre seu grande e definitivo revés, quando o pai, depois de perder o apoio da prefeitura local para seu empreendimento, resolve imigrar com a família para o Canadá, em busca de condições melhores para Pi e seu irmão Ravi. Pi, que acabara de descobrir o primeiro amor, na Índia, ressente-se da decisão paterna, mas segue com a família e uma parte dos animais do zoológico, em um navio, para a grande jornada que mudará seu destino. Durante uma forte tempestade, Pi sobe sozinho ao convés, sem prever o perigo que se aproximava. O navio começa a afundar, apesar de tentar, ele não consegue encontrar sua família, é empurrado pela tripulação para um bote, junto de uma zebra, que ao cair da embarcação quebra a pata, uma hiena, um orangotango e um tigre. Depois de  mais de 30 minutos de narrativa, a tal grande aventura de Pi tem seu início, o menino precisa sobreviver em um bote, em meio ao Oceano Atlântico, dividindo o restrito espaço com os quatro animais, três deles não resistem, restando apenas ele e o tigre de bengala, chamado Richard Parker. a relação mais sobressaltada é a dele com o, inicialmente, intratável tigre. A falta de comida, de água, os imprevisíveis fênomenos naturais, além dos incontáveis perigos em alto mar, não são as maiores ameaças a sobrevivência de Pi, seu desafio maior está em aprender a controlar o assustador Richard Parker. Seus dias são consumidos por estratégias que prolonguem sua sobrevivência, que afastem-no do perigoso tigre, embora quando surge-lhe a oportunidade de livrar-se do felino ele não o faz, por pena, cumplicidade e identificação, afinal ambos estão literalmente "no mesmo barco".

  Pi tem sua fé, remotamente tão ampliada, cada dia mais testada, ele reage, revolta-se, mas sempre volta a clamar seu Deus, seja ele qual for. Tem na fé seu consolo maior, tem na presença do tigre um motivo a mais para se manter firme e vigilante, em determinada parte da narrativa Pi afirma que o medo que tinha de Richard Parker salvou a sua vida. E por isso, que é preciso aprender a lidar com os nossos próprios medos, alimentá-los quando preciso, domá-los quando o momento for propício, aproximar quando ele passa a ser menos ameaçador e depois da trajetória cumprida, aprender a abandoná-lo, sem tanta dor. Porque serviu-lhe de companhia durante a dura jornada, mas sua presença eterna ceifa a liberdade e impossibilita uma vida plena. 

  Pi não acredita o tempo todo, como qualquer um de nós, diante de adversidades da vida. Pi tem desafios que sempre o surpreendem, chegam nos momentos de maior calmaria e, nessa estória, compreendemos o verdadeiro sentido de "um dia após o outro"; sobreviver mais um dia é privilégio, duramente conquistado. É na  própria vontade de acreditar  que a fé existe, é na vontade de viver que nasce um sobrevivente. É a história que construímos e naquela  que acreditamos que justifica nossa trajetória, a verdadeira estória é a que elegemos verídica, o resto todo é só para contar em um frio laudo. Fábula, história; aventura, drama; filme, livro; inspiração, plágio; tigre, jaguar, a vida nunca é feita de um único ponto de vista, "As Aventuras de Pi" é uma inspiração para aqueles que acreditam que a vida pode sempre surpreender, que amor e força podem ser aprendidos, em qualquer situação, e que nenhuma estória deve se limitar a uma só perspectiva.


Filme: "As Aventuras de Pi" (EUA, 2012)
Direção: Ang Lee
Duração:127 min.


Livro: "A vida de Pi" (2001)
Autor: Yan Martel
N° de páginas: 356

Livro "inspiração": Max e os Felinos (1981)
Autor: Moacyr Scliar
N° de páginas: 128


3 comentários:

  1. Excelente Amanda!
    Espero que ele ainda esteja em cartaz até sábado, quero muito poder conferi-lo na tela grande. Foi através de teu texto que tive noção da profundidade da reflexão que ele propõe, até então a minha impressão é que ele era um tratado meio infantilizado sobre sobre religiosidade, agora percebo que a fé que ele aborda transcende a religiosidade...

    http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/

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  2. Então, J. Bruno, acho que o fato de não ter lido nada a respeito, nem ter a menor expectativa sobre o que eu assistiria contribuiu muito para minha boa impressão da obra. Depois até li algumas resenhas negativas, algumas críticas até bem consistentes a respeito de algumas falhas na narrativa, mas o fato é que há algumas percepções muito subjetivas e particulares do expectador que o fazem se identificar mais com algum filme; "As aventuras de Pi" tocou-me mais pelo que não vi, mas senti, fui convidada e aceitei ao convite para uma reflexão mais profunda. Espero que goste do filme.
    PS: O filme assume uma outra dimensão na tela grande, gostaria de tê-lo visto em 3D, mas não estava disponível...Abraços

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