Sucesso de público

sábado, 10 de junho de 2017

Furiosa a poesia queima os dias mornos - Paterson


Adam Driver

  Você preferiria ser um peixe? Você preferiria ser uma mula? Você preferiria ser um porco? Ou, quem sabe, você preferiria ser um poeta? Paterson, o protagonista-poeta do filme de mesmo nome não faz escolhas, ele é um peixe, um motorista e um poeta.
   Paterson (2016) de Jim Jarmusch é uma narrativa preciosa sobre o nada, não um nada-ausência, mas um nada a partir da repetição de um cotidiano sem sobressaltos, sem sustos ou excessos, o nada na pós-modernidade: sem perfil em redes sociais, sem celular, sem publicidade.  O filme de Jarmusch é um poema-filme sobre a sorte de um amor tranquilo e a intranquilidade do fazer poético. Paterson é o nome da personagem, da cidade, do ônibus que o protagonista dirige, ele é a cidade, é quem  ocupa o banco da frente do veículo que circula pelas mesmas ruas diariamente, mas  transcende porque não é somente o que esperam dele. O filme é uma narrativa delicada, por vezes, melancólica, sobre paixões que não escapam, ainda que os dias mornos pesem.

  Paterson (Adam Driver) é o motorista de ônibus da pequena cidade, sua homônima, no estado de Nova Jersey, onde também nasceu e viveu  o poeta Willian Carlos Willians, por quem ele nutre grande admiração. Paterson é um leitor contumaz, um poeta das insignificâncias, um jovem de corpo grande, olhos melancólicos, escuta sensível e uma vida atravessada pela poesia; toda ela. Não porque lê ou porque escreve poemas, mas porque vive a aspereza do cotidiano, poeticamente. De uniforme azul, da empresa de ônibus, carregando uma lancheira com as fotos de Laura, sua companheira e de Dante Alighieri, o poeta italiano, andando tímido, pelas ruas pacatas, com pés grandes e sapatos baratos, Paterson é um homem invisível, que não luta contra o seu apagamento, pelo contrário, parece caber bem no papel de quem observa e sente.

  Paterson acorda todos os dias no mesmo horário, sem despertador, beija sua amada, admira-a enquanto ela dorme, faz o café, sai de casa,  conduz vidas, lê as ruas e as pessoas a sua volta, observa e escreve. Um poema começado no café da manhã, persegue-o durante todo o dia. Na volta para a casa, ajeita a caixa de correios, sempre torta e instável, podia ele pregar melhor a caixa e evitar o trabalho diário? Podia. Mas  ele aceita a precariedade no seu quintal e prefere ajeitá-la diariamente, quando volta do trabalho. A vida na casa é provisória, fluída, leve, construída não para ser firme ou durar, mas para ser um enquanto gracioso, que muda mais na forma do que na essência. Aliás, casas são apenas casas ou não?
  À noite, ao chegar em casa, Paterson experimenta um cardápio inusitado que a sua mulher sempre prepara, leva o cão Martin para passear, um buldogue pesado, entediado, toma uma cerveja no bar e volta para casa para dormir, para no dia seguinte recomeçar o mesmo ciclo.
  Este é também um filme sobre a vida para além dos dias da semana e dos ponteiros do relógio. Imerso na banalidade dos dias comuns, ao mesmo tempo no limbo, observando a cidade de um lugar mais elevado, que é a cadeira de um condutor de coletivos. A vida de todos os dias poderia sufocar, mas Paterson tem a poesia e ela o tem.

  Sua mulher Laura (Golshifteh Farahani) é a musa do poeta, mas uma inspiração contemporânea, ativa, sedutora, sonhadora e que partilha com Paterson de uma perspectiva mais criativa e menos ajustada no mundo. O casal aparentemente comum, tem uma vida delicada, permeada de pequenas amorosidades, artes e admiração mútua. Mas são anarquistas nos detalhes, nas escolhas, na relação entre eles e com o mundo, porque são dois seres poéticos que se equilibram entre os sonhos inconstantes e grandiosos dela (rainha dos cupcakes, estrela da música country)  e a obstinação dele (escrever e dirigir ônibus, apenas).  Laura é obcecada pelas cores preto e branco, as paredes da casa, cortinas, tapetes, talheres, roupas, cupcakes, guitarra, em tudo ela imprime a sua marca, logo ela que é tão colorida e alegre, mas estranha quando assistem um filme P & B no cinema. Laura e sua torta de couve de bruxelas e cream cheese; Laura que sonha com o seu amado em cima de um elefante prata na Pérsia antiga, que sonha que os filhos nascem gêmeos e velhos. Laura que estimula e admira a escrita do seu homem; Laura a única leitora possível de Paterson.

  A partir das linhas que Paterson escreve no caderno inseparável, que ele se recusa a fazer cópias, é que conhecemos quem ele é. Nas suas páginas é que ele estabelece e expressa a sua relação mais profunda com o mundo, já que cotidianamente é um homem discreto, pouco expressivo e cujas relações sociais são bastante limitadas.
  O cão, Martin, também é uma personagem importante, pesado, preguiçoso, inexpressivo é ele quem  repousa os olhos empapuçados sobre a rotina de Paterson e, justamente ele é quem também devora os poemas do seu dono, literalmente, que em uma distração do poeta, tem seu único caderno destruído pelo cão. Uma possível analogia com a rotina, o paradoxo da contemplação e do fazer poético, o cão pertence aos dias repetidos, que destrói, tantas vezes as pequenas belezas cotidianas.

  Em um dos seus poemas, "Poema de amor", a inspiração do motorista-escritor é uma caixa de fósforos: "Tão contido e furioso,  obstinadamente pronto/ a queimar em chamas/ acendendo talvez o cigarro da mulher amada/ pela primeira vez… eu me torno o cigarro e você o fósforo/ ou eu o fósforo e você o cigarro/ ardendo em beijos que queimam até o céu". Quando ele descreve o fósforo ele diz sobre ele e sobre a sua vida conformada, até então, em uma ordinária caixa de fósforos. Ele, assim como o fósforo, é tão contido (quando dirige) e furioso (quando escreve), obstinado a arder em chamas.

   Uma das cenas mais tocantes da narrativa é o encontro do motorista-poeta com uma garotinha poeta, ela oferece para ler um dos seus poemas para ele, que aceita e a ouve atentamente. Ambos conversam sobre poesia e ela pergunta se ele gosta de Emily Dickinson, antes de se despedirem, ele reponde que é uma das suas poetas preferidas. Ela se surpreende e sorri:
-  Um motorista de ônibus que gosta de Emily Dickinson!
  Ela acha inusitado, porque ele se apresentou como motorista, além de poeta. Um motorista não deveria gostar de poesia. Ele volta para casa e recita alguns versos da pequena poeta e reflete, pensa sobre eles, com a seriedade e a profundidade que um poema merece. Ele não subestima o poema de uma garotinha, porque não lhe parece inusitado que uma menina também faça, leia ou goste de poemas.
 
  O momento mais angustiante do filme de Jarmusch e que o ator Adam Driver interpreta magistralmente, é a partir da cena em que o casal encontra o caderno de poesias, escritas por Paterson, completamente destruído, sem nenhuma cópia ou arquivo digitado, ele é um poeta sem poemas. E agora, é um poeta, se não tem poemas?
  Ao final, perdido dos  seus manuscritos, Paterson segue para um dos seus lugares de contemplação  e lá tem um inesperado encontro com um poeta japonês que foi conhecer a cidade de Paterson pela admiração ao poeta Willian Carlos Willians. Ele pergunta a personagem Paterson se ele é poeta e ele solta um lacônico:
- Não. Sou apenas um motorista de ônibus.
  Conversam sobre poemas, poetas e escolas literárias e o poeta japonês, ao se despedir, presenteia Paterson com um caderno novo:
- Às vezes, uma página vazia dá mais possibilidades.

  O filme é uma linda exaltação à simplicidade, ao cotidiano reelaborado, vivido às margens dos excessos de produtividade, competição, publicidade, comunicação e expressão vazias, ou quase, de sentimentos. Você preferiria ser um peixe?
  Paterson é um filme sobre as muitas vidas que um ser pode abarcar. Somos aquilo que amamos, não o que fazemos ou o que esperam que façamos. Paterson é uma narrativa poética que amplia a nossa responsabilidade de estar no mundo, o nosso compromisso de habitarmos mais de um mundo, sem medo e atendermos aquilo a que somos chamados a fazer passionalmente, mesmo que isso não pague o nosso aluguel nem nos ascenda ao estrelato.
   É um poeta, se não tem poemas?  É um poeta, porque tem a poesia.