Sucesso de público

sábado, 9 de julho de 2016

A resistência elegante de Cabíria


Giulietta Masina

   Não importa quanto tempo tenha desde a última vez que as vimos, nem interessa tanto o contexto em que elas se apresentaram, às vezes, perdemos até o restante da narrativa, mas algumas personagens se inscrevem num lugar de nós, para jamais se perderem. E vão conosco pela vida, frequentam nossas memórias como um alguém muito próximo, que admiramos, gostamos, sentimos saudades até, como se em algum momento tivéssemos compartilhado partes das nossas vidas com elas. E passam a ser para nós, a materialização de algum sentimento nosso. A Cabíria, de Giulietta Masina, é para mim a resistência mais elegante, a personagem que me emociona sempre, a toda revisita. É a esperança que não cessa de renascer para sempre. O filme de Felinni, de 1957, "Noites de Cabíria", foi quem me deu a personagem, me fez gostar dela já nos primeiros minutos da narrativa, me conduziu a um caminho de emoção a cada perda e possibilidade de reviravolta na vida de Cabíria e, finalmente, fez os olhos marejados dela se prenderem na minha lembrança.

  Cabíria é uma jovem italiana, do interior, que após a perda dos pais, se prostitui na suntuosa Roma. Na primeira cena do filme, enamorada, ela passeia com o seu amante, trocam um beijo apaixonado, até ele empurrá-la para um rio, para roubar sua bolsa. Cabíria é salva por crianças que presenciam a sua queda e pelo esforço de moradores da região, que a retiram da água, antes dela seguir para o esgoto. Os homens ainda lhe prestam os primeiros socorros, quando ela recobra a consciência e sai em busca do namorado, sem entender como chegou a se afogar. A ingenuidade de Cabíria  é desconcertante. Somente quando volta para casa e a vizinha Vanda - sua amiga, confidente, colega de trabalho e consciência - desvenda o mistério da queda é que Cabíria entende que a queda não foi acidental e que o amante não retornará. Cabíria foi enganada e tem raiva do homem e de si mesma que chegou a acreditar no seu amor. Mas a raiva não dura, a vida pede urgência e logo ela volta ao trabalho.

  Na casa simples, da qual tem muito orgulho em ser proprietária, conhecemos uma Cabíria frágil, sonhadora e solitária. Na casa distante do centro opulento de Roma, Cabíria guarda suas memórias, alguns poucos bens que adquiriu, dos quais se orgulha muito, e aprisiona a esperança que, frequentemente, esconderá para não ser alvo de chacota. A Cabíria da noite é saltitante, é mais segura e parece vestir a armadura da realidade para que o sonho não a derrube mais. Mas os olhos de Cabíria não mentem, ela é uma sonhadora e esperançosa eterna.

  O filme se desenrola em torno de pequenos episódios, que nos revelam a dureza da vida de Cabíria e, a um mesmo tempo, a leveza dos seus grandes olhos para a vida repleta de adversidades. Há uma sequência em que o acaso a leva até a mansão de um famoso ator italiano e ela parece, finalmente, viver um sonho com tranquilidade, até a súbita interrupção, em que ela é acordada do sono e retirada do sonho bom. Em uma das madrugadas, quando volta para casa depois do trabalho, Cabíria conhece um benfeitor que ajuda os moradores de cavernas da região, por onde ela passa. Ela pede carona, já que volta a pé e o caminho é longo, ele concorda, mas só o fará quando terminar de fazer suas doações. Cabíria segue o homem, se emociona em cada visita, reconhece uma das moradoras, antiga colega de profissão e se emociona com a miséria, que é maior que a dela e com a dedicação do homem em salvar a vida daqueles que ninguém mais se preocupa. Ela volta para casa com o desejo latente de mudar de vida.O encontro com o homem, a imagem da miséria, a solidariedade que ela assistiu, tudo é tão perturbador, que Cabíria roga ao divino por uma mudança.

  Mas Cabíria tem urgência e não conhece a paciência cristã, desiludida com a própria fé, depois de uma viagem a um santuário, ela entra em um teatro e acaba escolhida para participar de um espetáculo de hipnose. Em transe, os sonhos de Cabíria vêm à tona, se apresentam em público da maneira mais doce e emocionante. A independência, a dureza, toda a máscara de realidade, sucumbe à voz do ilusionista, aos comandos e a cena dirigida por ele. No episódio mais emocionante do filme conhecemos a Cabíria que não morreu na miséria, nas perdas, nas noites difíceis, nas desilusões sucessivas, na negação do amor verdadeiro, na Roma que a humilha nem na miséria da qual ela tenta se afastar. É lindo ver o sonho de Cabíria; é emocionante ver sua máscara abandonada no palco. Mas depois da sequência, ela ainda viverá a dor da entrega, da ingenuidade e da sua crença e desejo de amor.

Cabíria, mesmo com todos os cuidados de alguém a quem muito maltrataram, volta a acreditar que a nova vida sonhada está se realizando. Se despede de Vanda, sua consciência mais plena e relação mais afetuosa, vende seu maior bem, a casa da qual se orgulha tanto e segue para seu recomeço, que não se realiza.

  Mas mesmo depois de perder tudo, de quase ser morta e, mesmo de querer estar morta, Cabíria se ergue. E com ela, levantamos também. Porque não conhecemos a potência da nossa força até sermos convocados a ela. A dor nos leva ao chão, as perdas nos fazem querer desistir, mas há um momento, num lugar que não conhecíamos que uma quentura de esperança nasce e se espalha por todos os  membros do nosso corpo, quase congelados. Então voltamos, quentes, a acreditar na próxima curva.  Afogar Cabíria, enganá-la, roubá-la, rir dela, nada é capaz de destruir a sua esperança em uma coroa de flores e passeio no jardim de mãos dadas. Por isso, a cada  desengano, lembro-me de Cabíria e os sonhos dela embalam, um pouco, os meus.  Na resistência elegante de Cabíria, nos reconhecemos enganados e sonhadores. Na próxima esquina pode estar o sonho e se não estiver, vamos a outra.


As noites de Cabíria - Itália, França (1957)
Direção: Frederico Fellini
Duração:115 min.



2 comentários:

  1. Lindos e emocionantes, filme e texto.Impecáveis. Obrigada.

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    1. Que bom que gostou, Cibelle! Adoro esse filme, há muito queria escrever sobre ele, finalmente saiu. Eu é quem me sinto grata pela leitura e comentário! Obrigada!

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