Sucesso de público

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

E se essa já for a minha melhor versão?


Greta Gerwig, Laurie Metcalf, Saoirse Ronan


  Esta pergunta, saída de uma cabine de roupas de uma loja de departamentos em Sacramento
(Califórnia), ecoa aqui, ainda. A frase, fragmento de um diálogo entre mãe e filha, aparentemente banal, sem arroubos ou choros descontrolados, está no filme estadunidense, lançado no Brasil em fevereiro deste ano (2018). A comédia dramática "Lady Bird - A hora de voar", está repleto dessas preciosidades singelas, disfarçadas de banalidades. 
  Christine Mcpherson, que se autodenomina "Lady Bird" está no último ano do colégio e o seu maior desejo é sair da cidade onde nasceu. "Mãe, eu pareço ser de Sacramento?", ela pergunta em umas das primeiras cenas do longa metragem para a pragmática Marion. "Você é de Sacramento, isso que importa.", reage sua mãe.
  Para realizar a sua empreitada, de voar para longe de casa e ir para uma universidade fora das proximidades da cidade natal, Lady Bird, filha de uma enfermeira e um homem recém-desempregado, cujas condições financeiras da família parecem limitadas e o seu desempenho escolar mediano não a ajudaria a conquistar uma bolsa, pede a ajuda do pai, Larry, para assinar as requisições de vagas para universidades americanas, que não estejam próximas a Sacramento, já que a mãe está decidida a restringir as solicitações de matrícula para somente uma universidade, menos conhecida e mais barata, na Califórnia.

  Os conflitos mais recorrentes, as emoções mais latentes (entre palavras, silêncios, gestos e olhares) e os diálogos que mais tocam, na narrativa fílmica, ocorrem entre Lady Bird e Marion. Mãe e filha discordam de tudo a todo o tempo. Lady é sonhadora, impulsiva, criativa e egoísta, talvez porque seja jovem, filha de pais mais permissivos (especialmente Larry) e, ainda, imatura ou, talvez, porque seja o que ela já é. Marion é pragmática, controladora, generosa e previdente, talvez porque seja uma mulher de meia-idade, madura e filha de uma mãe alcoólatra e abusiva ou, talvez, porque seja o que ela é desde sempre. No entanto, a trajetória de ambas é conduzida por uma linha de coragem e força, cada uma a seu modo.  Miguel (o irmão mais velho de Christine) e Larry, especialmente, são os coadjuvantes que amortecem os choques entre as duas mulheres.

  Outras personagens e enredos que circundam o seu universo tedioso, segundo a percepção da protagonista, são pequenas pérolas de sensibilidade e reflexões mais profundas. Uma melhor amiga mais resignada ao destino de viver "para sempre" em Sacramento, um primeiro amor cuja sexualidade precisa ser escondida, o acolhedor padre e professor de teatro da escola católica, enfrentando solitariamente (ou como ele diz, na companhia divina) a depressão, o irmão e a cunhada recém-formados, perdidos profissionalmente. Em Lady Bird ninguém tem certezas, todos estão orbitando em torno de algo que pareça dar algum sentido à vida: vaga em uma universidade, carreira, saúde mental, novo emprego, pagar as contas no final do mês, ser amado, ser aceito.

  O filme também aborda de maneira sutil a doença do pai de Lady Bird, de quem ela é muito próxima, que trata de depressão há pelo menos dois anos, mas que ela descobre somente quando encontra os medicamentos, com o nome dele, no banheiro da família. Porque o pai quer poupá-la da informação, que a mãe confirma e ainda sugere que Lady é egoísta demais para perceber as emoções e os problemas do restante da família. Marion é enfermeira em uma clínica psiquiátrica,  a quem o padre, professor de Lady procura. A clareza, a sinceridade e o pragmatismo com que Marion concebe e organiza o seu mundo e daqueles que estão à sua volta são farpas doloridas que entranham sob as unhas de Lady Bird. A rigidez e as recorrentes reprimendas da mãe, dirigidas à jovem são os maiores motivos de conflito entre as duas.

  Quando Lady Bird já está prestes a se formar, a diretora do colégio católico, durante uma conversa, diz  a ela que leu a sua redação sobre a cidade de Sacramento e, a partir da riqueza da sua descrição, percebeu o quanto ela amava a cidade. Lady Bird diz: "Não amo. Eu só presto atenção nela". E a diretora pergunta: "E não é a mesma coisa?".

   Lady Bird e Sacramento; Lady Bird e Marion. Estar atenta não é amar?

  Enquanto Lady Bird experimenta um vestido para o baile de formatura e a mãe a acompanha,  em meio as inseguranças bastante próprias das jovens mulheres, muito estimuladas pela mídia de massa, como a insatisfação com a aparência e a busca por uma identidade própria através de um bem de consumo, após os seus insucessos em conquistar elogios da mãe, Lady pergunta o porquê dela ser tão dura. Marion não parece se surpreender com a pergunta "Eu só quero que você consiga ser a sua melhor versão". E Lady Bird rebate: "E se essa já for a minha melhor versão?". Ambas se calam, somente. Marion é capaz de amar o que a filha já é? E se essa noção otimista que os sujeitos evoluem durante a sua trajetória, basta que se esforcem continuamente, for limitada?
  Lady Bird finalmente consegue voar de Sacramento. Quando a mãe descobre a traição da filha, acobertada pelo pai, ela segue sem conversar com a jovem, mas não contesta a decisão de refinanciar a casa da família para que a jovem vá para Nova Iorque. Lady Bird não desiste de seguir o seu sonho, mesmo que isso comprometa as finanças de toda a família; Marion não se despede da filha com um abraço e um beijo emocionado no aeroporto. E se essas já forem as suas melhores versões? Serão amadas, mesmo assim?        

  É um filme poderoso, dentro de toda limitação de uma só obra, sobre o que é ser, crescer e envelhecer mulher. Não há guerras, não há bombas nem explosões, não há feridas profundas e expostas, mas há  "a dor e a delícia" de não saber o que se é.
  Em uma cena do filme, enquanto Lady Bird discute com o namorado, que acha sua reação demasiada exagerada, a respeito de uma descoberta, e a subestima comparando-a com pessoas em situação de guerra , Lady responde: "Não é porque eu não estou numa guerra que eu não sofro". No universo das dores, sentimentos, afetações humanas, tudo é universal e particular. Todos sofremos, mas cada um de nós tem um repertório também individual.
  O filme não é feminino porque tem como protagonista uma jovem mulher, como coadjuvante uma mulher madura ou uma roteirista e diretora mulher, mas o é porque as sutilezas e as profundidades das personagens femininas não são tratadas como misteriosas, incompreensíveis ou só românticas; são vozes humanas somente. E isto é feminista demais. O filme é uma versão sobre o que é crescer mulher, não sei se é a melhor, mas é uma possível.


Lady Bird - A Hora de Voar (EUA, 2017)
Direção e roteiro: Greta Gerwig
Duração: 94 min.


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