Sucesso de público

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A nostalgia da Nostalgia - sobre o filme "Nostalgia da Luz"



  Quanto tempo um filme pode durar? Digo, quanto tempo um filme permanece no espectador, ainda, depois de terminado o seu último frame? Um minuto, um dia, será para sempre? O documentário do chileno Patricio Guzmán pertence ao tempo das indeterminações. De certeza mesmo só a de que ele não acabará quando os créditos subirem. É o tipo de produção que ecoará indefinidamente, talvez mais em alguns, menos em outros, mas muito poucos passarão incólumes ao filme de 2010, lançado no Brasil em 2015,  "Nostalgia da Luz". Descobri-o há pouco, mas ele permanece, e parece, a cada dia mais colado em mim.

  O documentário de Guzmán se passa no deserto do Atacama e tem seu início muito correto e promissor, aparentemente despretensioso, com a abordagem  sobre o cotidiano em um observatório astronômico ao norte do Chile. O  Atacama tem clima, umidade e altitude que favorecem, e muito, a observação do Espaço, olhar para o céu no deserto, mesmo sem equipamento específico algum é vê-lo límpido, livre das poluições urbanas e vislumbrar constelações que parecem mais próximas. Já no início da produção trabalha-se a metáfora de um "olhar para o passado". Um dos personagens sentencia: "Olhamos o que não podemos mais mudar. Olhamos para o que já está acabado".

  Mas Guzmán pretende ir mais longe, por isso, explora um outro espaço-tempo do deserto: as escavações arqueológicas. O solo do Atacama também favorece a conservação dos nossos corpos terrenos (coincidência?), sob a sua aridez, temos também o passado dos homens, além daquele das galáxias. Mais uma vez, o olhar para o passado. E é ele quem demarcará o tempo, aproximará ofícios e apontará para as reflexões que invadirão a tela.

  No céu, sob o solo, o passado da humanidade é descortinado, mas para quê, se já é acabado? Ciência, pesquisas, saber do passado para entendermos os rumos ao qual estaremos submetidos ou pelo qual assumiremos responsabilidade. Mas, sobretudo, para entendermos do que somos feitos, para prestarmos a nossa história as devidas contas. 

  E então, o filme assume sua voz mais cara, aquela silenciada durante o duríssimos anos de governo ditatorial; o deserto do Atacama também guarda os desaparecidos políticos da ditadura de Pinochet. Entre depoimentos de astrônomos e arqueólogos, junta-se a firmeza de quem busca o passado não por ofício ou vocação, mas pelo fardo da obstinação. A coragem de ir até o fim de cada história é, também, assumir as dores e as diversas voltas que o passado esboça durante o seu resgate. Nada pode escapar à memória, nada pode sepultá-la para sempre, porque ela se dissipa e, dividida, ocupa muitas almas. Mulheres chilenas atrás dos seus mortos, de restos que as convocam aos sepultamento de suas próprias histórias. E o que antes era só um filme encantador, se torna um incômodo, ainda que terno. O desconforto também é belo.

  As personagens femininas são as mais contundentes, porque falam de um lugar para além de observadores ou perscrutadores, são elas que precisam ser encontradas; a busca de cada uma delas é por si mesma. Por isso, seguem em busca de partes, de corpos que talvez jamais encontrem, pedaços de ossos que precisam ser sabidos de fato.

   "Nostalgia da Luz" é um filme sobre o tempo, sobre quantos passados ecoam dentro de nós, sem nem nos apercebermos deles; é também sobre o tempo que a produção nos alimenta, nos leva a um outro estado. É um filme sobre a dívida e a tentativa - para sempre vencida - de prestarmos contas ao passado. O filme é arte, em uma perspectiva nietzschiana: "é a possibilitadora da vida, a aliciadora  da vida, o grande estimulante da vida". 

Nostalgia da Luz (2010, França, Chile, Espanha, Alemanha, EUA)
Direção: Patricio Guzmán
Duração: 90 min.





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Então...