Sucesso de público

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Álbum de família - no lugar das fotos, a palavra

  
Julia Roberts

  A palavra consola, agrega, conforta, frequentemente, nos salva; pela palavra o bom pastor arreda suas ovelhas da escuridão, da lábia do lobo oportunista; a palavra absolve-nos em um julgamento: mantém-nos inocentes, independente do crime; crime maior é o de não usá-la ou fazê-lo inapropriadamente. A palavra nos impele a dor de uma verdade, derrota-nos, nos condena a um destino indesejado. "Álbum de família" (2013) é um filme sobre palavras, especialmente, sobre aquela que é negada. Na primeira cena, uma frase de T.S. Eliot: "A vida é breve" e a personagem, um professor de literatura aposentado, que a cita, tem a sua participação igualmente breve, mas é partir de seu desaparecimento que as palavras, sucessivamente negadas, ganham voz, muitas vozes, ao menos, quatro fortes vozes femininas. E depois do primeiro grito, não há como calá-las mais.

  Depois do desaparecimento, o encontro das quatro vozes distintas e a dificuldade do diálogo. A matriarca, que em um primeiro momento aparece fragilizada por um câncer de boca e o uso abusivo de remédios, se revelará, ao longo da trama, através delas: as palavras. Contundentes, afiadas, permeadas de preconceitos, quentes e dolorosas como brasas, ela usa-as, especialmente para ferir, para mostrar sua força. E, mesmo acometida por uma doença que parece limitar-lhe a fala, sua pontaria é certeira , nunca erra um alvo. As palavras, antes, contidas  pelo pai sensato ou pela distância - já que somente uma das filhas permanece na cidade da família - já não conhecem mais barreiras, deixam de ser negadas e saem às enxurradas, destruindo tudo pelo caminho.

  A segunda voz, tão forte quanto a primeira, é a de Bárbara, filha predileta do pai, a quem ele depositara as expectativas de uma carreira literária, mas a filha talentosa se casa e segue o marido, professor universitário, de quem acaba de se separar. Mãe de uma filha adolescente, vivendo a dor de um término e, principalmente, a incompreensão deste, ela é requisitada a todo o tempo a remediar as crises familiares e como a mãe, suas palavras, negadas na literatura; na vida,  têm a potência destruidora de uma bala de metal.

  As outras duas irmãs, têm vozes secundárias, Ivy é calada pelo medo, sua fragilidade é medida pela escassez de palavras, quase não se manifesta verbalmente, aparece pequena, escondida, preterida, a única a permanecer na pequena e quente cidade. Ivy só aparece quando não aguenta mais se calar e também fala, surpreendentemente tão feroz quanto as outras. Já Karen é a própria superficialidade de seu discurso. Parece não fazer parte de nada, nem família, nem cidade, nem do luto.

  Conhecemos cada uma das personagens pelo que, até então, calado, aos poucos, vem à tona. A trama se desenrola, sobretudo, nos diálogos (talvez porque o texto do filme seja uma adaptação do teatro) marcados pela tensão, pelos rancores e segredos tão abundantes, que só cabem em recipientes profundos, guardados pelo cadeado da memória. "Álbum de família" é um filme árido, desconfortável, um deserto de afetos, cujas tempestades vêm em forma de palavras. O filme nos faz lembrar do poder destruidor delas, da força aterradora de uma voz por muito tempo calada, ainda que voluntariamente, pois as palavras ferem, mas quando negadas, ganham, com o tempo, o tempero intragável da amargura. E depois dos ritos, das fotos, das reuniões gastronômicas, o gosto amargo de um desfecho apropriado. Não há um só sobrevivente no embate, entre mortos e feridos, a última e derradeira palavra: - apague a luz quando sair.


"Álbum de família" -  (EUA , 2013)
Direção: John Wells
Duração: 121 min.



Um comentário:

  1. Sem palavras fico eu, quando leio algo q descreve tão bem as sensações que senti enquanto assistia ao filme... Árido, desconfortável, amargo, mas muito real!

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