Sucesso de público

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quinta-feira, 30 de julho de 2015

"A História da Eternidade" - ou a história de todos nós

  
Débora Ingrid (Alfonsina)

  Qual o caminho para a eternidade? Onde nos instalamos, depois que a vida nos abandona? Em que lugar permanecemos depois da inevitável partida? Ou isto aqui é tudo? Então, passamos? E só? Não pode. Não aceitamos o final sem vestígios; nunca.  A história de todos nós passa inevitavelmente pela necessidade de permanência, mesmo quando a vida caminha para a despedida. E por isso buscamos, desesperadamente, sermos amados, notados, ouvidos, vistos, ao menos por uma fração mínima de segundo da vida, buscamos algo ou alguém em quem nos eternizarmos. E quando isto acontece é sublime, é a constatação plena de existência; existo porque o outro me vê, me tem. Se reparto, se deixo alguma marca, não parto definitivamente.

  "A História da Eternidade"(2015), é um filme singelo, despretensioso aparentemente, contudo é perturbador, altamente profundo e muito poderoso. Pois coloca na tela o medo, a angústia, os nossos sonhos e segredos mais interiores, utilizando personagens culturalmente específicos, mas que são capazes de abarcar toda a poesia sobre o enfrentamento que a condição humana nos requisita. No sertão profundo, três personagens universalizam tais questões humanas. Em um ambiente inóspito ao feminino, numa sociedade marcadamente machista, três mulheres sertanejas serão as grandes responsáveis pelos rumos da história do vilarejo que compartilham. 

  Alfonsina é uma adolescente de quinze anos, que na ausência da mãe, assume todos os trabalhos domésticos, além dos cuidados com o pai e  com os quatro irmãos. A menina sonhadora, de rosto angelical,  que sonha com mar é fortemente influenciada pela relação afetuosa e de identificação que mantém com  um tio epilético; um artista amador, cuja arte não cabe no vilarejo tão apequenado para as linguagens subjetivas e quase não cabe em si, pela saúde fragilizada e obstáculos que precisa enfrentar em defesa daquilo que ele é. Querência é uma mulher de meia idade, que acaba de enterrar um filho pequeno, ser abandonada pelo marido e que em meio a dor e a escuridão (a casa de janelas e portas cerradas) precisa lidar com as investidas de um sanfoneiro com deficiência visual, que a persegue. Querência parece não suportar, ainda, o tamanho do amor que o sanfoneiro está disposto a oferecer a ela. A outra personagem é Das Dores, uma mulher de setenta anos, devotada à igreja e aos problemas de cada morador da vila, que solitária, depois da morte do marido e da mudança dos filhos, recebe um neto em fuga. A visita do rapaz despertará em Das Dores  desejos recônditos e sublimados por décadas, o que a colocará frente a uma desordem moral e, ao mesmo tempo, muito natural -  fruto da sua solidão e carência. 

  As três personagens viverão conflitos bastante específicos e a narrativa desenvolverá as ações de cada enredo numa dimensão muito íntima, quase particular, mas ao mesmo tempo, sempre passível de identificação e projeção. Além das protagonistas, a personagem do tio de Alfonsina, Joãozinho, trará o peso da subjetividade em meio a uma sociedade  árida, dura e incompatível com as questões da alma. Neste caso, a leveza do artista pesa, incomoda e gera grande parte das lutas interiores de cada personagem. 

  A fotografia da obra é um deslumbre, as tomadas da câmera delicadas e a trilha sonora muito emocionante, todas em sintonia, para assinalar um sertão muito rico em beleza e poesia. O sonho de Alfonsina proporcionado pelo tio é um dos mais sublimes, além da performance do artista vocacionado na música de Ney Matogrosso. 

  Ao final, cada uma das personagens guardará, sob o peso de perdas e escolhas, um pouco da eternidade de outras vidas. O filme, além dos medos e angústias,  é, também, sobre marcas, memórias e sonhos. Ninguém de nós passará, seja qual o vilarejo em que nos instalamos, incólumes a dureza que é viver. Também não seremos nunca a poeira cósmica para sempre desaparecida, em algum momento nos prenderemos a uma outra vida, nem sempre por escolha nossa. A eternidade é possível, não a imaginada, mas outra, que acontece enquanto nos perdemos em desejo, sonho e coragem súbita.


A História da Eternidade ( Brasil, 2015)
Direção: Camilo Cavalcante
Duração: 120min.





segunda-feira, 6 de julho de 2015

A nostalgia da Nostalgia - sobre o filme "Nostalgia da Luz"



  Quanto tempo um filme pode durar? Digo, quanto tempo um filme permanece no espectador, ainda, depois de terminado o seu último frame? Um minuto, um dia, será para sempre? O documentário do chileno Patricio Guzmán pertence ao tempo das indeterminações. De certeza mesmo só a de que ele não acabará quando os créditos subirem. É o tipo de produção que ecoará indefinidamente, talvez mais em alguns, menos em outros, mas muito poucos passarão incólumes ao filme de 2010, lançado no Brasil em 2015,  "Nostalgia da Luz". Descobri-o há pouco, mas ele permanece, e parece, a cada dia mais colado em mim.

  O documentário de Guzmán se passa no deserto do Atacama e tem seu início muito correto e promissor, aparentemente despretensioso, com a abordagem  sobre o cotidiano em um observatório astronômico ao norte do Chile. O  Atacama tem clima, umidade e altitude que favorecem, e muito, a observação do Espaço, olhar para o céu no deserto, mesmo sem equipamento específico algum é vê-lo límpido, livre das poluições urbanas e vislumbrar constelações que parecem mais próximas. Já no início da produção trabalha-se a metáfora de um "olhar para o passado". Um dos personagens sentencia: "Olhamos o que não podemos mais mudar. Olhamos para o que já está acabado".

  Mas Guzmán pretende ir mais longe, por isso, explora um outro espaço-tempo do deserto: as escavações arqueológicas. O solo do Atacama também favorece a conservação dos nossos corpos terrenos (coincidência?), sob a sua aridez, temos também o passado dos homens, além daquele das galáxias. Mais uma vez, o olhar para o passado. E é ele quem demarcará o tempo, aproximará ofícios e apontará para as reflexões que invadirão a tela.

  No céu, sob o solo, o passado da humanidade é descortinado, mas para quê, se já é acabado? Ciência, pesquisas, saber do passado para entendermos os rumos ao qual estaremos submetidos ou pelo qual assumiremos responsabilidade. Mas, sobretudo, para entendermos do que somos feitos, para prestarmos a nossa história as devidas contas. 

  E então, o filme assume sua voz mais cara, aquela silenciada durante o duríssimos anos de governo ditatorial; o deserto do Atacama também guarda os desaparecidos políticos da ditadura de Pinochet. Entre depoimentos de astrônomos e arqueólogos, junta-se a firmeza de quem busca o passado não por ofício ou vocação, mas pelo fardo da obstinação. A coragem de ir até o fim de cada história é, também, assumir as dores e as diversas voltas que o passado esboça durante o seu resgate. Nada pode escapar à memória, nada pode sepultá-la para sempre, porque ela se dissipa e, dividida, ocupa muitas almas. Mulheres chilenas atrás dos seus mortos, de restos que as convocam aos sepultamento de suas próprias histórias. E o que antes era só um filme encantador, se torna um incômodo, ainda que terno. O desconforto também é belo.

  As personagens femininas são as mais contundentes, porque falam de um lugar para além de observadores ou perscrutadores, são elas que precisam ser encontradas; a busca de cada uma delas é por si mesma. Por isso, seguem em busca de partes, de corpos que talvez jamais encontrem, pedaços de ossos que precisam ser sabidos de fato.

   "Nostalgia da Luz" é um filme sobre o tempo, sobre quantos passados ecoam dentro de nós, sem nem nos apercebermos deles; é também sobre o tempo que a produção nos alimenta, nos leva a um outro estado. É um filme sobre a dívida e a tentativa - para sempre vencida - de prestarmos contas ao passado. O filme é arte, em uma perspectiva nietzschiana: "é a possibilitadora da vida, a aliciadora  da vida, o grande estimulante da vida". 

Nostalgia da Luz (2010, França, Chile, Espanha, Alemanha, EUA)
Direção: Patricio Guzmán
Duração: 90 min.





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Eu tô falando de amor e não da sua doença..." - The Normal Heart

  
Mark Ruffalo

  Os olhos mais brilhantes, a coragem mais desconcertante, a ideia mais persistente, assim como as palavras mais atrapalhadas e, ao mesmo tempo, mais certeiras são, sem qualquer vestígio de dúvida, as de um apaixonado. Paixão é fome e fome jamais pode ser sublimada ou ignorada, porque tem urgência, não é como amor, sonho ou sexo que, por vezes, esperam firmes o momento de realização. A fome não aguarda, ela começa no agora e só termina na satisfação urgentemente consolidada; é a exigência biológica que se não satisfeita pode parar um corpo, ceifar uma vida. A fome não nasceu para esperas, ela é a medida mais grave da urgência.

  "The Normal Heart", o filme estadunidense, adaptação do teatro e produzido para TV é, sobretudo, um filme sobre o poder altamente redentor e, por vezes vezes, destrutivo da paixão. Need Weeks (Mark Ruffalo) é a materialização dessa contradição poderosa de uma forma corajosa de viver - é doce, terno, apaixonante e também  tenaz, ácido e implacável -  um homem impulsionado, dirigido (tantas vezes descontroladamente) pela paixão, nas suas mais diversas formas, todas elas passíveis de justificativa, compreensão e, especialmente, admiração.

  Início da década de 80, em plena liberação sexual gay, uma doença misteriosa e fatal, que vitima especialmente homens gays e por isso, passa a ser conhecida no meio médico como "câncer gay" é o fio condutor da narrativa, dirigida por Ryan Murphy. A doença desconhecida e, inicialmente, ocultada dos grandes meios de comunicação é posteriormente motivo para uma histeria e segregação de um grupo culpabilizado pelo seu aparecimento. Need Weeks, escritor e ativista social é o homem que não sucumbirá ao medo, vergonha ou ao terror do desconhecimento e possibilidade de contaminação. É a voz que não se cala, mesmo quando ninguém quer ouvir. 

  Em uma trajetória comovente, o homem das paixões despertará a ira de autoridades, gays enrustidos e até dos membros do seu próprio grupo de amizade e luta. Porque Weeks é um homem faminto, rejeita diplomacias que só atrasam a descoberta e a luta pela sobrevivência de cada conhecido infectado, desobedece as regras, rejeita burocracias, preconceitos e as individualidades que atravancam os caminhos para a luta. Weeks tem a fome e a coragem de um guerreiro; "pero sin  perder la ternura jamás". 

  Há também muito amor, atravessando toda a narrativa, o combate em "The Normal Heart" é bordado em um bastidor de afeto e luta pessoal pela aceitação do que se é, mesmo que isto tenha tantas vezes afastado o escritor dos seus amores mais profundos. A relação com o irmão mais velho é conflituosa, mas emocionante, terna e de uma profundidade invejável; a sua amizade, nascida a partir de uma paixão platônica pelo galã Bruce Niles (Taylor Kitsch) é perpassada pelas diferenças ideológicas e, por isso, haverá mágoa, dor e rupturas, como só as grandes amizades são capazes de suportar (ou não); a relação de descoberta e admiração com a médica Emma (Julia Roberts) uma aguerrida pesquisadora da doença, que dará a dimensão merecida aos casos e os tratamentos mais humanizados aos seus pacientes é quase maternal (ambos exercem os dois papéis, ora mãe, ora filho);  mas a maior força e também a vulnerabilidade mais emocionante de Weeks será sua relação amorosa com o apaixonado Bommer.

  Pelo amado, Weeks se tornará um guerreiro ainda mais combativo e, ao mesmo tempo, desesperado. A fome do ativista será mais latente e urgente, quando descobrem que o companheiro também está infectado; a corrida agora passa a ser contra o tempo, tempo que corre, quanto maior o desejo de torná-lo estanque.  O amor quer eternidade, a luta pede combate, mas a doença não concede o tempo para ambos; Weeks não tem escolha, ele tem fome de luta e amor e a sua urgência é bonita, mas altamente dolorosa. 

  O filme mostra a aspereza de uma sociedade egoísta, radical e altamente preconceituosa, que culpabiliza vítimas, segrega as minorias e oculta suas próprias mazelas, apontando tudo aquilo que soa, em seus ouvidos acostumados a um só ritmo, como desajustes alheios; acompanha a saga de um militante que propõe essencialmente a aceitação própria de cada sujeito e que, faminto e passional, se atrapalha em um mundo rodeado por muros racionalizantes e individualistas. Mas o filme também traz a singeleza de um amor breve e infinito, o laço que enternece um combate altamente desgastante e duro. Em tempos onde as ideologias normativas, segregacionistas e reacionárias tentam conter as diversidades e as vozes nos seus tons mais diversos, o filme é um tratado sobre o quanto apaixonar-se por uma causa é bonito, também inegavelmente doloroso, mas é a beleza maior de uma vida. E mesmo que doa, mesmo que digam que é errado e queiram te ferir pelo que você é; não é doença, é saúde maior, porque é amor.    



The Normal Heart ( EUA2014)
Direção: Ryan Murphy
Duração: 114min.







terça-feira, 24 de setembro de 2013

Como esquecer Elena?


  Eu senti Elena. Além de assisti-lo, também o senti. O vi há alguns meses e desde então, ele vive dentro de mim, pulsante. Ora me afogando nas mesmas águas turvas de Elena, ora nadando nas águas límpidas de sua irmã Petra. Por vezes  bailando, sorrindo e interpretando, outras tantas, angustiada, perturbada e fracassada. Elena inteira; Elena em fragmentos. Não se assiste a um filme desses e simplesmente recomenda-o ao amigo, não se diz : - Vai lá assiste que é bom. Porque Elena ( Brasil, 2012) deve ser sentido, precisa ser sentido; e só quem pode fazê-lo são os frágeis-fortes de alma. Só a contradição dos adjetivos pode fazer sentir Elena, porque cada parte sua deve ser inteiramente perscrutada, sem medo, com a coragem de coração e corpo. Porque depois de Elena, o corpo também se exaure em água, dança, dor, memórias próprias e dos outros e, principalmente, em poesia.

  O filme resgata as memórias de uma família, de uma atriz, uma ardorosa amante da arte, a bela Elena; traz à cena o olhar doloroso de uma irmã marcada pela ausência daquela com quem dividira genes, pais, casa e perspectiva de futuro; uma mãe mutilada pela tragicidade da morte prematura e inexplicável de uma das filhas. Três mulheres atreladas ao destino definitivo e perturbador de uma delas. 

  O documentário de Petra Costa é quase um tratado poético sobre os laços afetivos e, no caso dela, também biológico. Em Elena, somos confrontados com o entendimento angustiado da profundidade da nossa ligação com aqueles que amamos; o quanto as decisões por quem temos tanto afeto, irão nos impactar de maneira irremediável. E o quanto nós, involuntariamente, influenciamos o destino das vidas que tomamos emprestadas ou definitivamente para nós, sem ao menos, nos darmos conta. O filme nos lembra a todo instante o quanto estamos fatal e irremediavelmente condenados aos laços. Não há como fugirmos deles. Não apaga-os, não afoga-os, não os enterramos nunca. Elena é um ensaio sobre família, laços e memória.  Além, é claro, sobre o papel determinante da arte na vida de três incríveis mulheres.

  Elena, a personagem título, tem a beleza da outra, com "H" da mitologia, uma beleza impactante, dessas para muito além do estético; diáfana com uma deusa. Sedutora, ela tem como seu amante mais permanente, a arte. Elena ama e se declara constantemente a esse seu amor.  Entre as emoções contraditórias de uma relação amorosa ela vive e morre pelo seu amante. Passional ela ameaça: "A arte para mim é tudo,  sem a arte eu prefiro morrer". E Elena é o excesso; quando ela não suporta não é pela ausência, porque Elena sobra, Elena tem excessos demais na alma, Elena não morre, transborda e por isso o filme dói com beleza.

  Depois de Elena é preciso que se sobreviva. Mas sobreviver como? Sem Elena? Como esquecer Elena? Depois de Elena, pelo menos duas almas destroçadas, a de uma menina e a de uma mulher. Mãe e irmã da deusa desaparecida precisam curar suas dores e o próprio medo da desistência. Cada qual atrelada, agora mais estreitamente, uma a outra. A terceira partiu. Das três, restam duas. E decisão melhor é não lutar para esquecer, mas lembrar e de tanto lembrar, resgatar; para só assim,  despedirem-se. 

  Elena é a personagem e também o filme; duas Elenas separadas pelos destinos diferentes que a arte marcará as duas trajetórias; para a personagem, sua morte; para o filme, sua salvação. Eu não assistiria a Elena eu o sentiria. Elena foi-se e deixou para trás dor e poesia. Elena não é para os fracos. Elena é para os sensíveis, para os que se deixam levar pelas águas curadoras da poesia.


"Elena" - Documentário (Brasil, 2012)
Direção: Petra Costa
Duração: 82 minutos





sexta-feira, 31 de maio de 2013

Das limitações - Sobre "Ferrugem e osso"

  
Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts
 
Eu o escolhi, veria no meu aniversário; li uma sinopse rápida e não precisava de mais. Era ele. Uma hora antes e eu chegava ao cinema decidida, até que: - Não há mais ingressos para este, moça. Quer ver outro? Eu não queria, este era o filme do meu aniversário. Aniversariante sem escrúpulos, ainda usei o "meu dia" para sensibilizar a atendente e depois a gerente, porque pedi sim a intervenção dela. Voltei para casa sem assistir o filme aquele dia, mas eu sabia que "Ferrugem e Osso" era o meu filme "de aniversário" e depois de 15 dias ele me foi "entregue". Presente inesquecível que me dei.

 Em "Ferrugem e Osso" acompanhamos o nascimento de uma relação inusitada, inesperada até e, mais tarde, completamente justificada. A atraente Stéphanie (Marion Cotillard)  é uma jovem treinadora de orcas de um parque aquático no litoral francês que conhece Alain (Matthias Schoenaerts), o segurança de uma boate que ela frequenta, em um lance do destino. Com relações sociais, vida e laços completamente opostos, ambos jamais se reencontrariam se não fosse o desespero de Stéphanie e a disponibilidade de Alain.

  A treinadora de orcas sofre um acidente no trabalho e perde as duas pernas, completamente deprimida, afastada do convívio de amigos e familiares, provavelmente pela dificuldade de lidar com os sentimentos daqueles que a amam; possivelmente o olhar de compaixão é um dos mais dolorosos. Ela resolve ligar para o segurança que conheceu apenas superficialmente, pois estabelecer uma relação com quem não a conhecia de maneira mais profunda, parece menos doloroso. Alain, que sobrevive e tenta sustentar um filho de cinco anos, com pequenos trabalhos como segurança é um homem pouco sensível, truculento e impaciente e através dessa relação aparentemente improvável é que ambos serão capazes de superar seus limites. Ela a física e ele a emocional.

 O fato de Alain ser completamente desprovido de sutilezas e não demonstrar nenhum pesar em relação a nova situação da treinadora é o que traz Stéphanie para um mundo mais simples, tosco em que reaprender a exercer as atividades mais banais não parece dramático, nem digno de pena. Alain, involuntariamente, ensinará à Stéphanie um novo jeito de caminhar. Stéphanie, através de Alain, encontrará novas possibilidades de felicidade, desejo e liberdade.

 De um outro lado, assistimos a um filme que fala sobre vocação, que eventualmente confundimos com trabalho, profissão. Aqui, ambos coincidem, mas na vida real nem sempre acontece do mesmo jeito. Stéphanie é uma competente treinadora de orcas, ensina animais perigosos a realizarem belas coreografias, tem como vocação domar feras e transformá-las em artistas de um espetáculo primoroso. Esta é a vocação (do latim "chamado") de Stéphanie e mesmo longe das orcas, ela atende ao seu mais caro chamado. Alain é a orca, homem selvagem que precisa ser "treinado" a superar suas limitações emocionais. Assim como faz com as orcas, a treinadora conhecerá Alain, ganhará, aos poucos, sua confiança, para mais tarde estreitar laços afetivos e finalmente, transformá-lo em uma beleza domada. 

  Há, ainda, a relação conturbada de Alain com o filhinho frágil que somente será resolvida depois que Alain conhecer a dor e mais que a dor, carregar as cicatrizes provocadas por esta dor. No final do filme Alain é capaz de concluir com um pensamento bastante sensível, algo do tipo: - Não é a dor que ensina, uma dor esquecida é passado. São as cicatrizes que ainda doem que nos trazem a lembrança dessa dor, só elas é que ensinam, de verdade.

  "Ferrugem e osso" é uma bela estória que ensina que as limitações são passíveis de superação; que as relações nem sempre são aparentemente ideais, mas são elas que nos levam a um outro estágio necessário; ensina que em alguma medida somos chamados a cumprir nossa vocação e se não nos recusarmos nós podemos sempre transformar e sermos tranformados. 

"Ferrugem e Osso" (França/ Bélgica - 2012)
 Direção: Jacques Audiard
 Duração: 120 min.




 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Humanos... sobre "Somos tão jovens"


Thiago Mendonça

  O que faz com que um alguém se torne um ídolo? Quais as características super especiais que alguém precisa carregar para sobressair-se, conquistar e deixar um legado artístico para uma sociedade? Qual é a medida da obra de um artista, produtividade, popularidade ou relevância para o seu tempo? A cinebiografia de um dos maiores artistas brasileiros não responde diretamente tais perguntas, mas ilumina tais reflexões. "Somos tão jovens"( Brasil, 2013), ainda que exista controvérsias, é sim, um ótimo filme sobre uma figura das mais importantes do cenário, variadíssimo, da música brasileira.

  O filme, entre seus personagens verídicos, facilmente reconhecíveis, do Rock brasileiro da década de 80 e alguns "inventados", traz a história da vida pré-ídolo de Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo. O adolescente curioso, ávido por conhecimentos diversos: astrologia, filosofia, literatura e música (mais tarde podemos comprovar cada uma das influências desses temas em sua obra), entre erros e acertos, tentativas, muitas vezes desastradas de formar sua tão sonhada "banda punk", muda seu gosto, tema, se reinventa e, mais tarde, cria mais que uma banda, um jeito próprio de compor, se apresentar, cantar e até mesmo, viver.

  O maior mérito do filme não é, de maneira alguma, retratar de modo fiel os caminhos para a construção de um ídolo, pelo contrário. A produção cinematográfica mostra um sujeito completamente humano, antes de tudo falível, imperfeito, caótico, passível das piores mazelas a que todos nós também estamos expostos. Um indivíduo se construindo e dialogando o tempo todo com suas questões morais, filosóficas, afetivas e profissionais. Um jovem questionador crescendo em meio (no olho do furacão) de um poder ditatorial, excludente, violento, coercitivo que ora cheio de coragem, ora crédulo da sua incapacidade de lutar, transgride, subverte e também reflete sobre a sociedade a seu redor e, com a mesma profundidade, a sua confusão individual, através das suas composições.

  A mim, pareceu-me inevitável algum grau de identificação com o protagonista, os sentimentos contraditórios, a vontade de fazer tudo e nada,  a sensação de se sentir vazio e ao mesmo tempo cheio, a necessidade de ver o mundo de forma complexa e também singela, mas o que difere um homem comum de um artista é a capacidade de transformar a sua  angústia (e a dos outros) em obra permanente.  E Renato fez música. Música para os amores não realizados, música para sua insatisfação com a política do país, música de pedido de desculpas, para o medo, para as incertezas (tanto as individuais, quanto as coletivas), música que contava estórias que todos precisavam saber, música para o seu caos, o caos do país, do mundo, contou a própria história, a dos seus amigos e a até, aquele nosso mais secreto e inconfessável drama.

 Eis o segredo de um grande ídolo: fazer o que é preciso, com arte, dizer o que todo mundo quer dizer ou ouvir com poesia. Renato Russo é o ídolo, o resto é celebridade, tão ou mais efêmera que os poderosos de Brasília. O cantor e compositor que sempre mereceu lugar especial no meu MP3, depois dessa sessão de cinema, ganha uma proporção mais humana e, ainda mais, admirável aos meus olhos e coração. 


"Somos tão Jovens" (Brasil, 2013)
Direção: Antônio Carlos da Fontoura
Duração: 104 min.






segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Escolha o seu lado - Sobre "O lado bom da vida"

Bradley Cooper
  
  No jornal local as sinopses dos filmes em cartaz não são nada confiáveis, mas ele é, ainda, a minha maior fonte de "consulta" sobre o assunto, porque a informação quanto ao horário das sessões é, até hoje, preciso. E é tudo o que eu realmente desejo saber sobre um filme antes de vê-lo. 
  
  O gênero, de acordo com a publicação, é comédia romântica, disso também desconfio, só no último mês, dois dos filmes que vi, não correspondiam ao gênero anunciado na coluna. Que seja, gosto de surpresas. A companhia para o programa também não podia ser melhor, assistiu o filme duas vezes, em casa, e quase nada me revela sobre ele. Ela gostou, possivelmente eu também goste. Não sou exigente e gosto, sem medo algum de admitir, muitíssimo de comédias românticas (não julguem-me por isto!). Não preciso justificar meus gostos, tampouco este até bem comum, mas ainda assim o faço: afora as análises muito rígidas sobre tal estilo de filme "mulheres gostam porque este gênero de película repetem os modelos dos contos de fadas infantis, em que um 'príncipe encantado' surge para salvar a mocinha de um mundo de infortúnios"; carrego comigo a crença de que as comédias românticas são o bálsamo em meio a uma vida de dureza, obrigações massantes e uma realidade cruel, imperfeita e permeada de desencontros. Tal gênero, a mim, possibilita algumas horas de uma respiração descomprometida fora do meio, tantas vezes, sufocante, que é a vida cotidiana. Happy ends cinematográficos são a visão, ainda que perecível, de uma paisagem otimista. O filme, no entanto, adianto para quem não viu, não é uma comédia romântica e sim dramática. Neste caso, a informação imprecisa não comprometeu. A mim, fez um "efeito" de comédia romântica, com os impactos que acabei de listar.

  "O lado bom da vida", é uma adaptação do primeiro romance do professor de inglês Matthew Quick. O filme, sucesso de público (indicado a oito categorias do prêmio Oscar de 2013) conta a estória de Pat Solitano (Bradley Cooper) e se passa em um típico subúrbio americano. Inicia-se com a saída dele de um hospital psiquiátrico, ainda que não recomendada pelos médicos, mas autorizada e muito desejada pela sua mãe. Pat, diagnosticado com bipolaridade, precisa se adaptar a um nova vida, repleta de limitações: sem esposa, de quem está judicialmente proibido de aproximar-se; sem emprego e sem a própria casa, além , é claro, da rotina enfadonha do próprio tratamento, com visitas ao terapeuta e medicação controlada. O retorno de Pat ao convívio social, é dos mais comoventes, o "otimismo químico", a falsa sensação de retomada do tempo perdido, a emoção da família em vê-lo de novo, o desconforto dos amigos que não o visitaram e as suas desculpas tão pouco verídicas, tudo está lá. 

  Obcecado pelo retorno da "vida anterior", pela mulher, a qual torna-se a grande meta e objetivo de "cura" e evolução, Pat nos rouba o coração, sensibiliza e nos força a algum tipo de identificação. Seja pela fragilidade (no seu caso a doença psíquica), pelos momentos de euforia intercalados com depressão e fúria, seja pela vontade genuína de ser melhor para alguém. Aos poucos somos apresentados à família, amigos e, finalmente, à dinâmica a qual Pat precisa se adaptar: a mãe amorosa, abnegada e excessivamente zelosa; ao pai jogador compulsivo, rígido, claramente afetado pelo TOC, ao irmão tosco, não suavizado por qualquer verniz de sofisticação ou delicadeza, ao melhor amigo, cheio de boas intenções, mas completamente controlado pela mulher. Pat receberá ainda as visitas do amigo da clínica, em fuga, frequentemente, e conhecerá Tiffany (Jennifer Lawrence), com quem veremos aflorar uma relação conturbada, mas, ao mesmo tempo, delicada, enriquecedora e repleta de entendimento mútuo.

  Pat e Tiffany, aos poucos formarão um casal,  bem pouco convencional, é verdade, mas muito promissor. Pois ambos são a doença e a cura; o que impede e o que impulsiona; são a loucura e a sanidade; agressividade e sutileza; são ódio e amor, tudo junto, ao mesmo tempo e aprendem um com o outro a dinâmica de uma relação muito própria. À certa altura do filme, compreendemos que os sonhos de Pat Solitano não são passíveis de realização e o passado de Tiffany não poderá ser apagado, mas isto nem ela mesma deseja, quando diz a frase emblemática: "eu tenho um lado sujo e gosto dele também" e Pat descobrirá outras metas, outros sonhos, outros motivos para desejar melhorar.

Não sei se pela sensação de comédia romântica, não sei se pela dança (que adoro) - Tiffany e Pat participam de uma competição - não sei se pela trilha sonora  pouco convencional, com destaque para "Girl from de North country", de Dylan e Cash, pela interpreyação de Robert De Niro, com quem sempre me emociono  ou mesmo pelo tema, mas "O lado bom da vida" conquistou meu coração.

  O filme nos faz pensar que, amar, é também entrar na loucura de quem se ama, para só assim ser possível tirá-lo de lá. Amar, inclusive, é respeitar e nunca temer a loucura alheia, nem a própria. Que o sucesso da última dança não consiste em dançar um único estilo com perfeição, mas somente o suficiente de uma variedade maior de estilos. Em um mundo cada vez mais exigente, mais apegado à perfeição, ser razoável talvez seja a maior fonte de felicidade. O lado bom é muito mais o olhar que ofertamos para cada situação, do que a situação em si. Nisto o filme não é nem um pouco trivial. Meu coração ele já tem e, só por isto, eu já daria o Oscar para ele. Porque, para meu entendimento, eis a maior propósito do cinema: emocionar. A mim, por estas e outras infinidades de razões que jamais poderei explicar, o filme tocou.


O Filme: "O lado bom da vida" (EUA, 2013)
Diretor: David O. Russel
Duração: 122 min.

O Livro: "O lado bom da vida"
Autor: Matthew Quick
N° de páginas:256



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Sonhos que movem - Sobre "os Miseráveis"

Anne Hathaway

 Como recontar uma estória escrita há mais de um século (1862), já  com dezenas de adaptações para o cinema, televisão e teatro e ainda assim despertar um crescente interesse do público contemporâneo, aparentemente cada vez mais ávido por novidade? Como a adaptação de uma adaptação (o filme é a adaptação,  do musical da Broadway "Les Misérables", de 1987, adaptada da obra de Victor Hugo) pode ser tão bem sucedida entre o público e crítica e ganhar novos fãs a cada dia? Como um musical, com duração de quase três horas, pode "aprisionar" até um espectador pouco simpático aos musicais, na cadeira do cinema? Como em uma única fita abordar temas, aparentemente tão diversos, como: injustiça, perdão, redenção, fé, ideologia, política, amor romântico e, ainda assim, dar conta de todos eles, sem "atropelar" o espectador?

  O sucesso de "Os miseráveis"(2013), parece-me ser a linha discreta, porém visível, que alinhava a emocinante saga de Jean Valjean, condenado a uma dura pena por roubar um pão para alimentar o sobrinho faminto, que encontrará sua redenção no amor fraterno de um religioso que possibilita uma nova chance ao homem injustiçado. A linha que costura as estórias do filme (o recomeço de Jean Valjean, a obstinação do inspetor Javert em prender o "fugitivo" Valjean, o triste destino de Fantine, a adoção de Cosette, a ambição sem limites dos Thénardier, o amor não correspondido de Éponine por Marius, a revolução francesa, a reciprocidade de afeto entre Cosette e Marius e, finalmente, o desprendimento de Jean Valjean, para que a filha conhecesse a felicidade) é a, algumas vezes trágica, mas sempre propulsora linha chamada, sonho. Em " Os Miseráveis" todas as personagens são conduzidas e, mais, impulsionadas, pelos próprios sonhos. Seja de maneira mais individual (Fantine que sonha em ter por perto a filha Cosette) sejam aqueles mais coletivos (como os ideais dos revolucionários franceses), todos lutam por algum sonho. Alguns caírão durante a dura batalha, outros poucos permanecerão de pé, mas todos experimentarão a força que move a humanidade - o sonho. 

  E, é exatamente através desta "linha" que um dos musicais mais emocionantes do filme será conduzido, a cena de Fantine (a incrível  e afinadíssima Anne Hathaway) cantando um dos temas mais bonitos de todos os tempos, a linda "I Dreamed a Drem") é tocante. Para quem conheceu-a na voz da até então desconhecida e estranha caloura do famoso show de talentos inglês, Susan Boyle, há anos atrás, talvez emocione-se ainda mais. Porque a memória subjetiva trará à superfície, a história também triste de uma personagem real, cujo sonho torna-se motivo de vergonha, juntamente com a personagem de Victor Hugo, que tem seus sonhos despedaçados, ambas, por um momento, dividem  a mesma perspectiva. É como se Susan e Fantine carregassem um pouco de nós em cada desilusão, cada triste derrocada e nós as trouxéssemos conosco em cada sonho nosso, ainda possível.  Por apenas uma linha tênue o fracasso e o sucesso, de um lindo sonho, estão separados.

  Emocionante também é a estória de Éponine, personagem cujos modelos familiares negativos não são capazes de torná-la egoísta ou má. A filha dos Thénardier não mede esforços para ver seu amado feliz, ainda que isto signifique estar ao lado de alguém que não ela. Este amor abnegado também é virtude de Valjean que mesmo desejando a companhia de sua amada filha Cosette, decide deixá-la viver seu amor com Marius, protejendo-a de seu passado obscuro.

  Suspeito que poucos são os que não se emocionarão. Terminado o filme, saímos do cinema com a forte sensação de que miseráveis mesmo são os que nunca sonham, que nem ao menos têm a possibilidade de verem seus sonhos despedaçados. Miseráveis são os que não deixam-se impulsionar por um grande sonho.  Existe maior pobreza que falta de sonho?


Em tempo: Lembrar-se de Susan Boyle ao assistir ao filme não é uma simples "brincadeira do destino". Li isto, ontem:  http://caras.uol.com.br/data/oscar-2013/post/susan-boyle-motivou-a-adaptacao-de-os-miseraveis-para-o-cinema-diz-produtor-teatral#image0

"Os miseráveis" (Reino Unido, 2013)
Direção:Tom Hooper
Duração: 158 min.




segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

"O que não tem censura nem nunca terá...o que será, que será" - Sobre "Amor"

  
  Nunca conherecemos nosso próprio limite até sermos postos à prova. Só compreenderemos, de fato, até onde somos capazes de ir, até nós irmos (porque "iríamos" é possibilidade, não é o chegar lá) ao que consideramos nosso máximo. Eu faria, seria, escolheria, entregaria é vago; é suposição, somente possibilidade. É só quando a situação é presente, que sabemos quem somos e até onde vamos ou nos deixamos ir.

  O filme chama "Amor", é francês , é um drama e a surpresa é que não há um só clichê em toda obra fílmica. Só o fato de fazerem um filme (meio que se utiliza-se da "arte de iludir" e, frequentemente, "recicla" inúmeras  referências já conhecidas) francês (com aquela tonelada de estereótipos sobre o país) e com este título perigoso (já que permite uma série de expectativas) sem parecer um "déjà vu", só por isso já vale conferir.

   Em "Amor", primeiro somos convidados a conhecer um simpático casal octogenário, independente, aparentemente harmônico e muito afetuoso, casal daqueles que muitos de nós já sonhamos em compor, um dia. Depois de voltarem de um concerto - a esposa Anne é uma professora de música aposentada e ambos são apaixonados por música clássica - conhecemos um pouco da intimidade delicada do casal, a volta para casa no transporte coletivo, o apartamento e seus móveis, livros, CD's, um pouco do cotidiano banal, medo da insegurança urbana. Já na manhã do dia seguinte, a trama ganha uma nova trajetória, as amenidades são substituídas por momentos de profundas incertezas, vulnerabilidade e adaptação. Anne sofre um AVC (acidente vascular cerebral), é internada para desobstruir uma artéria e nas palavras do próprio marido Georges, ela faz parte dos 5% de insucesso, das estatísticas. A cirurgia fracassa, Anne tem alta e volta para casa com o lado direito completamente paralisado. Já na sua chegada ela pede ao marido que nunca volte a interná-la, pois pretende terminar os seus dias no apartamento do casal. Georges e Anne têm, ainda, uma filha, pouco presente, uma musicista casada com um maestro renomado, que tenta convencer o pai a oferecer à mãe apenas os cuidados de especialistas. Mas, Georges mantém-se firme, até as últimas consequências, na promessa de não internar a esposa.

  A partir da nova condição de Anne, as inúmeras adaptações passam a ser frequentes e mais pungentes. Georges, seu fiel e doce companheiro, assume um novo papel, pois se antes ele era a parte mais frágil do casal, aquele que é "cuidado" pela parceira, ele rapidamente torna-se o cuidador da companheira debilitada. E nesta nada fácil missão, vemos a superação de um homem (aparentemente tão frágil), a dedicação ilimitada de um companheiro e a luta pela recuperação da saúde, conquista do bem estar (aceitação e conforto) e manutenção da dignidade de ambos.

  Aos poucos, somos convidados à reflexão e a identificação com a trama comovente e cada vez mais dura a qual acompanharemos. Não comover-se, a esta altura, creio não ser possível, afinal quem já testemunhou um ente querido paralisado, em sofrimento constante, sem medicina ou afeto possíveis, que curem ou, pelo menos, aplaquem a constante deterioração do ser que amamos, chora. Quem pensa ou já  pensou no seu destino futuro se compadece e também deixa as lágrimas rolarem. Anne sofre um outro AVC, tem sua capacidade de fala e raciocínio afetados, Georges conta com a ajuda de apenas uma enfermeira e parece cada vez mais debilitado. Neste momento da trama nos tornamos testemunhas oculares de um crime (?) motivado por amor, mas que não é passional, que pretende agir em defesa da vida, mas que não é legítima defesa. Um crime justificável e justificado. Em "Amor", compreeendemos que amar, às vezes, é fazer algo terrível, mas que você sabe que aplacará a dor de quem se ama; é colocar-se à disposição de uma culpa eterna para oferecer conforto ao outro.

  "Amour" merece ser visto, revisto e, principalmente, "sentido". Não vê-se uma estória dessas e se sai o mesmo, não entra-se na sala de cinema e continua leve a comer a pipoca; refrigerante ou água não tirarão o nó da garganta.

  Vale, ainda, o conselho: o filme é indicado para os suficientemente sensíveis que se entregarão e serão tocados pela estória, mas é contra-indicado para os frágeis demais, cuja trama poderá parecer de difícil digestão. "Amor" requisita sensibilidade e muita, muita coragem.


"Amor" (França, Alemanha e Áustria - 2012)
Direção: Michael Haneke
Duração:126min.




domingo, 30 de dezembro de 2012

Quando a maior aventura é a sobrevivência - Sobre "As aventuras de Pi"

  
  Sabe a boa sensação de ser completamente surpreendido por um filme? Fazer uma escolha aleatória no jornal, cujos parâmetros utilizados foram: horário mais distante e local mais próximo, torcer um pouco o nariz para o gênero (aventura), mas, ainda assim, seguir em frente e ser "soterrado" por avalanche de boas surpresas e informações?  "As Aventuras de Pi" (EUA, 2012) foi a minha grata e, provavelmente, derradeira, grande surpresa de 2012.

  Porque fui completamente incauta, desavisada e mal informada assistir ao comovente filme de Ang Lee, eventualmente a falta de informação pode ser benéfica, porque não cria expectativas, preconceitos e, ainda, possibilita que o novo nos tome pela mão e nos leve ao lugar que precisaríamos mesmo conhecer, sem ao menos termos ideia desta nossa própria necessidade. Primeiro, não conhecia a estória "original" do romance de Yann Martel (A Vida de Pi, 2001), mas já conhecia o imbróglio que o autor canadense havia criado, quando lançou - e foi premiado - o livro com um mote muito semelhante ao do brasileiro Moacyr Scliar (um naúfrago que disputa lugar em um bote com um tigre, na obra de Martel, e um também naúfrago que também disputa um lugar em um bote, só que com um jaguar, em Scliar. Apesar da semelhança muito destacada o escritor gaúcho, falecido em 2011, elegantemente não processou Martel e aparentemente deu-se por satisfeito com a agradecimento do autor canadense, que passou a vir nas edições posteriores a descoberta da "inspiração". Enfim, o autor canadense admitiu que leu e "inspirou-se" em Scliar. No mais, tigres, jaguares, botes à parte, como filme a estória é muito envolvente.

  A narrativa tem seu início em uma cozinha comum, simples, familiar, tradicional das sociedades norte americanas, logo somos informados no próprio diálogo, entre os dois personagens (o que narra e o ouvinte da estória) que ambos estão no Canadá. O narrador é indiano e o ouvinte é um escritor canadense, que está em busca de uma boa estória para seu novo romance e, por indicação de um conhecido comum a ambos, procura Pi Patel. A única informação que possui é que Pi tem uma grande história e é partir desta necessidade/curiosidade do escritor, que somos também convidados a conhecer a história da vida de Pi Patel. 

  A estória inicia-se com a explicação para o nome de Pi, cuja escolha não fora um apreço paterno pela matématica, muito embora o personagem demonstre logo cedo sua vocação para "virar o jogo", relacionando o seu nome com o número irracional, conhecido por Pi. Só o  menino indiano já é um grande personagem, cheio de matizes, com questionamentos muito profundos, uma busca muito peculiar para questões existenciais, incomum para sua idade. Nasce em uma família com herança hindu (a mãe cultiva a religião mais como forma de não perder suas raízes, embora o pai de Pi, seja completamente discrente de qualquer religiosidade), desenvolve um amor pela história de Cristo, que conhece de maneira completamente casual e, ainda, sente o chamado de Alá, quando passa por uma mesquita na Índia. Mais tarde, na literatura (nas palavras, segundo ele) encontrará o consolo para suas angústias adolescentes e se aproximará  daquilo aparentemente mais racional, vontade do seu próprio pai. Pi Patel é um personagem sensível, que embora embuído de uma curiosidade inata, em função da superproteção familiar e do ambiente cheio de restrições e segurança onde cresceu, desconhece experiências mais desafiadoras e diversas. Mesmo a sua relação com os animais, do zoológico do pai, onde cresceu, é sempre intermediada e quaisquer laços são interrompidos, mesmo antes de serem estabelecidos, para "preservar" Pi, das possíveis surpresas.

  A vida de Pi, no entanto, sofre seu grande e definitivo revés, quando o pai, depois de perder o apoio da prefeitura local para seu empreendimento, resolve imigrar com a família para o Canadá, em busca de condições melhores para Pi e seu irmão Ravi. Pi, que acabara de descobrir o primeiro amor, na Índia, ressente-se da decisão paterna, mas segue com a família e uma parte dos animais do zoológico, em um navio, para a grande jornada que mudará seu destino. Durante uma forte tempestade, Pi sobe sozinho ao convés, sem prever o perigo que se aproximava. O navio começa a afundar, apesar de tentar, ele não consegue encontrar sua família, é empurrado pela tripulação para um bote, junto de uma zebra, que ao cair da embarcação quebra a pata, uma hiena, um orangotango e um tigre. Depois de  mais de 30 minutos de narrativa, a tal grande aventura de Pi tem seu início, o menino precisa sobreviver em um bote, em meio ao Oceano Atlântico, dividindo o restrito espaço com os quatro animais, três deles não resistem, restando apenas ele e o tigre de bengala, chamado Richard Parker. a relação mais sobressaltada é a dele com o, inicialmente, intratável tigre. A falta de comida, de água, os imprevisíveis fênomenos naturais, além dos incontáveis perigos em alto mar, não são as maiores ameaças a sobrevivência de Pi, seu desafio maior está em aprender a controlar o assustador Richard Parker. Seus dias são consumidos por estratégias que prolonguem sua sobrevivência, que afastem-no do perigoso tigre, embora quando surge-lhe a oportunidade de livrar-se do felino ele não o faz, por pena, cumplicidade e identificação, afinal ambos estão literalmente "no mesmo barco".

  Pi tem sua fé, remotamente tão ampliada, cada dia mais testada, ele reage, revolta-se, mas sempre volta a clamar seu Deus, seja ele qual for. Tem na fé seu consolo maior, tem na presença do tigre um motivo a mais para se manter firme e vigilante, em determinada parte da narrativa Pi afirma que o medo que tinha de Richard Parker salvou a sua vida. E por isso, que é preciso aprender a lidar com os nossos próprios medos, alimentá-los quando preciso, domá-los quando o momento for propício, aproximar quando ele passa a ser menos ameaçador e depois da trajetória cumprida, aprender a abandoná-lo, sem tanta dor. Porque serviu-lhe de companhia durante a dura jornada, mas sua presença eterna ceifa a liberdade e impossibilita uma vida plena. 

  Pi não acredita o tempo todo, como qualquer um de nós, diante de adversidades da vida. Pi tem desafios que sempre o surpreendem, chegam nos momentos de maior calmaria e, nessa estória, compreendemos o verdadeiro sentido de "um dia após o outro"; sobreviver mais um dia é privilégio, duramente conquistado. É na  própria vontade de acreditar  que a fé existe, é na vontade de viver que nasce um sobrevivente. É a história que construímos e naquela  que acreditamos que justifica nossa trajetória, a verdadeira estória é a que elegemos verídica, o resto todo é só para contar em um frio laudo. Fábula, história; aventura, drama; filme, livro; inspiração, plágio; tigre, jaguar, a vida nunca é feita de um único ponto de vista, "As Aventuras de Pi" é uma inspiração para aqueles que acreditam que a vida pode sempre surpreender, que amor e força podem ser aprendidos, em qualquer situação, e que nenhuma estória deve se limitar a uma só perspectiva.


Filme: "As Aventuras de Pi" (EUA, 2012)
Direção: Ang Lee
Duração:127 min.


Livro: "A vida de Pi" (2001)
Autor: Yan Martel
N° de páginas: 356

Livro "inspiração": Max e os Felinos (1981)
Autor: Moacyr Scliar
N° de páginas: 128


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Não mirem-se nas mulheres de Atenas - Sobre "E agora, aonde vamos?"

  
  Mulheres em luto, vestidas de preto, algumas com lenços cobrindo a cabeça, semblantes pesados, faces austeras, como as viúvas personagens de Garcia Lorca . Os corpos em um monótono balanço, em uma coreografia fúnebre e dramática, é assim que a narrativa de "E agora, aonde vamos?" inicia-se. A comédia dramática tem a sensível direção de Nadine Labaki (também protagonista), premiada pelo igualmente delicado "Caramelo" (2007), um outro filme também feminino, não só pelo fato das protagonistas serem mulheres, mas, mais ainda, pela perspectiva muito peculiar sobre assuntos tão universais. 

  Em "E agora, aonde vamos"(2012), a guerra civil é tratada sob o olhar afetuoso e comovente de mulheres que perderam seus homens (maridos, filhos, irmãos) para um conflito injustificável. Em uma cidadela no interior do Líbano, cercada por minas terrestres, com difícil acesso e entretenimento restrito, mulheres com "M" maiúsculo tentam apaziguar os ânimos dos homens da aldeia, mais propensos a estourarem do que as próprias minas. Os Cristãos e  os muçulmanos, vizinhos, em um primeiro olhar, parecem conviver  pacificamente, em um ambiente de respeito e fraternidade mútua. No entanto, a narrativa ora com ares de fábula, permeados pelos pequenos números musicados, ora em estilo de anedota, com as cômicas estratégias elaboradas pelas mulheres, aos poucos revela que, na verdade, um conflito brutal está sempre iminente, poderá acontecer a qualquer momento, pelo menor motivo. Cabe então, às mulheres, tanto católicas, quanto muçulmanas unirem-se para que qualquer conflito, senão completamente extinto, permaneça, pelo menos, adormecido.

  O surpreendente convívio com as sensuais dançarinas ucranianas que chegam ao vilarejo, dão o tom da comédia na obra, as visíveis diferenças culturais, demarcam o quanto o feminino é diverso em um mesmo mundo, embora costumeiramente sejam tratadas como uma "única espécie". Assistimos também a aproximação comovente de mulheres culturalmente distantes: muçulmanas, cristãs e as urbanas ucranianas, todas se solidarizam e se envolvem no mirabolante plano de redenção da paz na comunidade.

  Por outro lado, a dor é retratada também de maneira pungente, no drama da mãe que esconde a morte do próprio filho para evitar o início de um conflito generalizado. Ela recolhe sua dor, afasta a revolta em nome de uma tentativa de manter os outros filhos vivos, assim como os filhos de outras mães. 

  A narrativa não é das mais perfeitas, a obra tem lá suas falhas, mas é otimista, é elogiosa, não somente às mulheres, mas, principalmente, ao feminino. A maneira, ao olhar, as soluções atribuídas ao gênero. O final é bastante fantasioso, mas aponta um caminho possível; o da empatia com aquilo que parece ser diverso. Pensem nas mulheres de Atenas, que Chico cantou:" (...)As jovens viúvas marcadas/ E as gestantes abandonadas/ Não fazem cenas/Vestem-se de negro, se encolhem/Se conformam e se recolhem/Às suas novenas/ Serenas", em comum, só o negro das roupas, porque em "E agora, aonde vamos?" as mulheres nunca se encolhem, conformam ou recolhem, elas vão à luta, a sua maneira, mas vão.


"E agora, aonde vamos? (França/ Líbano, 2012)
Direção: Nadine Labaki
Duração: 110 min.



quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quando o belo não é tão certo - Sobre "Biutiful"

Javier Bardem

  Imagine descobrir que tem poucos meses de vida, é o único responsável por dois filhos pequenos, frutos de uma relação conturbada, cujo parceiro é mentalmente instável. Imagine ainda, que sua renda seja proveniente de uma série de trabalhos ilegais e por isso completamente inseguro e que ainda que você trabalhe por horas a fio, o dinheiro é pouco e a instabilidade é total. Pense ainda que o seu meio social é altamente desestruturado, pouco confiável e inseguro. Que herança deixará para seus filhos? O que você ainda poderá fazer por eles? 

  Este é apenas o mote inicial para a construção do belíssimo "Biutiful (2010)". Em uma sinopse rápida, daquelas que vem atrás do DVD, poderia levar o espectador imaginar que é meramente um melodrama familiar, mas o mexicano Iñárritu não é um diretor de obras assim tão "simples". Visto seu histórico que contemplam, entre outros, "Amores Brutos" (2000), "21 gramas" (2003)  e "Babel" (2006). 

  Na obra de Iñárritu o drama pessoal dos personagens estão intimamente ligados ao drama de toda sociedade, afinal, existimos somente a partir das nossas interações com o meio social e mesmo geográfico. Aqui, especificamente, vivenciamos a estreita relação do protagonista Uxbal (Javier Bardem) com a sua cidade, Barcelona, o lugar pouco acolhedor para o estrangeiro, especialmente o ilegal, é onde Uxbal ganha a vida; Uxbal é mais que urbano, suas variadas interações tornam-o a própria cidade. Além de explorar o trabalho de imigrantes africanos,  como vendedores ambulantes, ele ainda entra em negociatas escusas para empregar ilegalmente chineses na indústria têxtil e construção civil. A derrocada do anti-herói de Iñárritul terá seu auge, de maneira extremamente dramática, quando seus "negócios" sofrem trágicos reveses. Neste momento, assistimos o "empresário" se humanizar ainda mais diante da dor e do sofrimento alheio. O homem que explora a mão-de-obra estrangeira é também um homem cuja empatia pelo outro não é esquecida.

  A estética escolhida pelo diretor mexicano é muito realista, as imagens são "sujas", com lugares mofados, pichados, pinturas desgastadas, ambientes claustrofóbicos, lixo, desordem. E tal escolha possibilita ao espectador compartilhar com Uxbal um pouco do seu desconforto, sua dor (tanto a física quanto a da alma). 

  Ainda há, no filme, alguma perspectiva mística, pois Uxbal comunica-se com os mortos. Logo no início da narrativa, o espectador é apresentado a essa faceta do protagonista. Testemunhamos Uxbal receber pequenas contribuições monetárias pelo serviço, ainda que seja orientado a não fazê-lo pela sua mentora espiritual. Ele até compreende a orientação, mas não segue, porque suas necessidades terrenas parecem muito mais urgentes.

  O homem "acostumado" a morte, foge dela grande parte da narrativa, corre contra o tempo. Precisa de dinheiro, de alguém confiável para cuidar dos seus filhos, deixar uma vida organizada antes de partir. Mas, conseguirá em meses, o que não conseguiu uma vida inteira? Uxbal dependerá de desconhecidos, logo ele que conhece a "sujeira" do mundo, seu universo é um emaranhado de ilegalidades, droga, álcool, relações doentias, corrupção, exploração; em quem Uxbal poderá confiar? 

  O nome do filme "Biutiful", da ortografia errada da palavra inglesa beautiful, tem origem em uma cena simplória e ao mesmo tempo comovente, em que ele ensina a lição de casa para a filha mais velha. Uxbal não é um herói, não é um pai ideal, profissional, nem ao menos místico ideal, mas tenta a todo custo acertar, principlamente no papel de pai. Ele erra na lição, erra na vida, mas deseja ter a chance de deixar algum legado, alguma segurança aos seus herdeiros. O filme de Iñárritu é inquietante, triste, melancólico, propõe discussões sociais doloridas, mas é bonito, de uma forma diferente, mas ainda assim muito belo. A beleza de "Biutiful" está em compreender que mesmo da maneira menos ortodoxa e clássica, por amor, desejamos sempre acertar. Nós, Uxbal e tantos outros erramos todos os dias, mas, pelo menos aqui, o diretor mexicano acertou muitíssimo. Este é um filme para quem não teme a beleza escondida, não-clássica, a beleza que esconde-se sob os erros, a única realmente verdadeira.


"Biutiful" (Espanha/México - 2010)
Diretor:Alejandro Gonzalez Iñárritu
Duração:147 min.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

A cor da liberdade - sobre "A liberdade é azul"

Juliette Binoche
 
  Da trilogia das cores, do polonês Krzystof Kieslowski, que faz uma analogia entre as cores da bandeira francesa e o forte lema de sua histórica revolução: "Liberdade, igualdade e fraternidade". "A liberdade é azul", é, para mim, o mais tocante. Delicada, fortemente introspectiva, a obra de 1993, convida-nos a um exercício de profundo, melancólico, assustador, mas também libertador abandono.
A estória do filme se passa na França contemporânea e tem como protagonista a bela Julie (Juliette Binoche, simplesmente divina no papel que rendeu-lhe os prêmios : Leão de Ouro, Cesar e uma indicação ao Globo de Ouro).

  Julie é uma jovem mulher, cuja vida parece estabelecida e muito bem sucedida, até perder em um acidente trágico de carro, o marido, um compositor muito famoso e a única filha ainda pequena. Após as perdas Julie se desespera e constata depois de uma tentativa frustrada de suicídio sua completa fragilidade, inclusive para ceifar a própria vida. Deprimida, chocada e completamente perdida, Julie ainda enfrentará descobertas que a levará para um lugar completamente desconhecido dentro de si mesma. O amado marido, antes livre de qualquer suspeita de traição ou infidelidade, deixa uma amante grávida, que julie virá a conhecer, o que desperta na personagem a desconfiança de ter vivido uma ilusão, uma vida diferente da que imaginava ter, com alguém que aos poucos, depois de outros indícios, não conhecia tão bem. A bela mulher terá de conviver com suspeitas, comprovações surpreendentes, com a solidão e, principalmente, com o desmoronamento contínuo de uma série de crenças e a descoberta de uma nova maneira de viver.

  As cenas aparentemente comuns de Julie tomando um café em um bar (com sorvete de creme), procurando um novo apartamento, observando um mendigo na rua, chorando entre os muros do condomínio nobre, em um mergulho profundo na piscina da academia, despedindo-se dos objetos de uma vida inteira, são sensíveis, poéticas e sutilmente "coloridas" de azul. Mais tarde, o flautista de rua aconselha que Julie precisa se prender em algo ou alguém. Mas, mais madura, compreensiva Julie só deseja se libertar da vida passada, da dor e, principalmente de tudo o que foi e nunca mais voltará a ser.

  "A liberdade é azul" é um pequeno, mas crucial retrato da verdadeira libertação. Não há liberdade sem dor, sem sucessivos abandonos: abandono de objetos, pessoas, sentimentos, valores e crenças. Abandonar, ainda que depois de muito choro, choque e café francês é a única saída para um vislumbre mínimo, que seja, da tal liberdade. Indico o filme, outras tantas obras do polonês (principalmente a trilogia, "A igualdade é branca (1993)" e "A fraternidade é vermelha" (1994)) e, mais, sugiro reflexão. Porque até para ser tocado, é preciso alguma liberdade.


"A liberdade é azul" (Suiça, Polônia e França, 1993)
Diretor: Krzystof Kieslowski
Duração: 97min.