Javier Bardem |
Imagine descobrir que tem poucos meses de vida, é o único responsável por dois filhos pequenos, frutos de uma relação conturbada, cujo parceiro é mentalmente instável. Imagine ainda, que sua renda seja proveniente de uma série de trabalhos ilegais e por isso completamente inseguro e que ainda que você trabalhe por horas a fio, o dinheiro é pouco e a instabilidade é total. Pense ainda que o seu meio social é altamente desestruturado, pouco confiável e inseguro. Que herança deixará para seus filhos? O que você ainda poderá fazer por eles?
Este é apenas o mote inicial para a construção do belíssimo "Biutiful (2010)". Em uma sinopse rápida, daquelas que vem atrás do DVD, poderia levar o espectador imaginar que é meramente um melodrama familiar, mas o mexicano Iñárritu não é um diretor de obras assim tão "simples". Visto seu histórico que contemplam, entre outros, "Amores Brutos" (2000), "21 gramas" (2003) e "Babel" (2006).
Na obra de Iñárritu o drama pessoal dos personagens estão intimamente ligados ao drama de toda sociedade, afinal, existimos somente a partir das nossas interações com o meio social e mesmo geográfico. Aqui, especificamente, vivenciamos a estreita relação do protagonista Uxbal (Javier Bardem) com a sua cidade, Barcelona, o lugar pouco acolhedor para o estrangeiro, especialmente o ilegal, é onde Uxbal ganha a vida; Uxbal é mais que urbano, suas variadas interações tornam-o a própria cidade. Além de explorar o trabalho de imigrantes africanos, como vendedores ambulantes, ele ainda entra em negociatas escusas para empregar ilegalmente chineses na indústria têxtil e construção civil. A derrocada do anti-herói de Iñárritul terá seu auge, de maneira extremamente dramática, quando seus "negócios" sofrem trágicos reveses. Neste momento, assistimos o "empresário" se humanizar ainda mais diante da dor e do sofrimento alheio. O homem que explora a mão-de-obra estrangeira é também um homem cuja empatia pelo outro não é esquecida.
A estética escolhida pelo diretor mexicano é muito realista, as imagens são "sujas", com lugares mofados, pichados, pinturas desgastadas, ambientes claustrofóbicos, lixo, desordem. E tal escolha possibilita ao espectador compartilhar com Uxbal um pouco do seu desconforto, sua dor (tanto a física quanto a da alma).
Ainda há, no filme, alguma perspectiva mística, pois Uxbal comunica-se com os mortos. Logo no início da narrativa, o espectador é apresentado a essa faceta do protagonista. Testemunhamos Uxbal receber pequenas contribuições monetárias pelo serviço, ainda que seja orientado a não fazê-lo pela sua mentora espiritual. Ele até compreende a orientação, mas não segue, porque suas necessidades terrenas parecem muito mais urgentes.
O homem "acostumado" a morte, foge dela grande parte da narrativa, corre contra o tempo. Precisa de dinheiro, de alguém confiável para cuidar dos seus filhos, deixar uma vida organizada antes de partir. Mas, conseguirá em meses, o que não conseguiu uma vida inteira? Uxbal dependerá de desconhecidos, logo ele que conhece a "sujeira" do mundo, seu universo é um emaranhado de ilegalidades, droga, álcool, relações doentias, corrupção, exploração; em quem Uxbal poderá confiar?
O nome do filme "Biutiful", da ortografia errada da palavra inglesa beautiful, tem origem em uma cena simplória e ao mesmo tempo comovente, em que ele ensina a lição de casa para a filha mais velha. Uxbal não é um herói, não é um pai ideal, profissional, nem ao menos místico ideal, mas tenta a todo custo acertar, principlamente no papel de pai. Ele erra na lição, erra na vida, mas deseja ter a chance de deixar algum legado, alguma segurança aos seus herdeiros. O filme de Iñárritu é inquietante, triste, melancólico, propõe discussões sociais doloridas, mas é bonito, de uma forma diferente, mas ainda assim muito belo. A beleza de "Biutiful" está em compreender que mesmo da maneira menos ortodoxa e clássica, por amor, desejamos sempre acertar. Nós, Uxbal e tantos outros erramos todos os dias, mas, pelo menos aqui, o diretor mexicano acertou muitíssimo. Este é um filme para quem não teme a beleza escondida, não-clássica, a beleza que esconde-se sob os erros, a única realmente verdadeira.
"Biutiful" (Espanha/México - 2010)
Diretor:Alejandro Gonzalez Iñárritu
Duração:147 min.