Harry Dean Stanton |
Em sua rotina diária, aparentemente tediosa: levantar-se da cama, fazer sua higiene pessoal, se alongar em cinco posturas de ioga, fazer o café, tomar um copo de leite, encher outro e colocá-lo no mesmo lugar daquele que acabou de tomar para tomá-lo no dia seguinte, ir ao supermercado comprar leite ou cigarros e conversar com a caixa, almoçar na mesma lanchonete, enquanto soluciona parte das suas palavras cruzadas, entre interferências dos funcionários amistosos, regar seu jardim com cactos, desvendar mais palavras cruzadas enquanto um game show passa na TV e terminar sua noite em um bar, cujos frequentadores são sempre os mesmos, há um pequeno acidente doméstico, que interromperá a monotonia e suscitará a maior descoberta da personagem.
Lucky (EUA, 2017) é um filme sobre um homem nonagenário, cuja consciência da aproximação da morte é evidenciada quando ele sofre uma queda em sua casa. Após uma consulta clínica e exames, o médico avalia que o estado de saúde do homem é perfeita, embora ele ainda fume um maço de cigarros diariamente, o que leva o profissional a recomendar que ele não abandone o hábito."Então, o que eu tenho doutor?", o protagonista interroga, "São as vulnerabilidades da idade", o médico sentencia. Sentado ainda na cama do ambulatório, Lucky fica desconcertado com a realidade revelada. O médico o interroga sobre as condições em que ele vive, se tem companhia, se é casado ou teve filhos e a partir das três respostas negativas, sugere que Lucky procure um serviço de amparo a idosos. Conta que foi muito importante para o próprio pai este tipo de auxílio. Se apropriando da descoberta do vocábulo que permeia o filme, Lucky indaga: - Onde está seu pai?. O médico responde: - Morreu.
A primeira consciência: todos morrem, independente das condições. Morrer é inevitável.
Depois da consulta, Lucky segue seu ritmo habitual, vai até à lanchonete e, sem dramas, comenta sobre a queda sofrida. A partir daí, todas as personagens que compartilham da rotina do nonagenário, também parecem receber a revelação da sua finitude.
A segunda consciência: independente da saúde, do histórico de vigor e aparente dureza: todos morrem. Morrer é universal.
Com Howard, um dos amigos do bar, Lucky tem os diálogos mais insólitos e profundos. Quando o amigo perde o seu jabuti de estimação, deixando-o inconsolável, diante da consciência da sua solidão e procura um advogado para fazer um testamento que conceda todos os seus bens ao jabuti, Presidente Roosevelt, quando ele for encontrado, Lucky tem a sua discussão mais acalorada. Acusa o advogado de enganar pessoas fragilizadas e diz a Howard que o final é este mesmo, só, assim como nascer.
A terceira consciência: morremos sozinhos. Morrer é solitário.
No dia seguinte, na lanchonete, o advogado numa intenção de se aproximar daquele que o acusou e que o desafiou para uma briga na noite anterior, se aproxima de Lucky e passa a elencar as vantagens de se preparar, burocraticamente, para a morte. "Minha família disca um número, a empresa leva o meu corpo e resolve tudo, minha família só se preocupará em se despedir de mim". Lucky ouve atentamente e pergunta: "Que diferença faz, se você estará morto?".
A quarta consciência: não preparamos nossa morte, preparamos a vida dos outros para a nossa morte. Morrer não requisita burocracia para quem morre.
Mais tarde, no bar, Lucky se encontra com Howard, que partilha com ele da seguinte reflexão: de que que a fuga do jabuti só aconteceu, porque ele, o Presidente Roosevelt, tinha um lugar melhor para ir e que talvez ele, com os seus cuidados, sempre estivesse o impedindo."O portão da minha casa vai estar sempre aberto, se ele quiser voltar, sabe onde me encontrar".
A quinta consciência: prender é matar. Deixar livre é expandir a vida.
Lucky é um filme que subverte as aparências, tem uma estética de faroeste, mas não é um filme de faroeste; tem um protagonista que calça botas de couro, usa chapéu de cowboy, se embebeda e procura razões para brigar no bar, mas é gentilíssimo; é ex-combatente da segunda guerra, tem voz impostada de um homem durão, poderia ser um xenófobo, mas fala espanhol e se relaciona com muito respeito e proximidade com os imigrantes com os quais convive; poderia se espantar com os desvios do padrão que ele conhece, mas faz elogios rasgados ao talento de Liberace, um artista da década de 60, cujos figurinos espalhafatosos e o comportamento singular suscitaram rumores sobre a sua sexualidade, em uma época ainda mais limitadora.
Lucky é um homem que se interessa verdadeiramente pelas pessoas, pelo que não é ele, pelo que é diverso, inusitado, novo. Lucky faz uma confidência a uma visitante inesperada, a funcionária da lanchonete que sente sua falta em um dia que ele não aparece: "estou com medo".
Sexta consciência: parecer não é ser. A realidade é individual.
Em um dos diálogos mais fortes do filme, no bar, quando dizem que ele só pode frequentar aquele em que ele está, porque já foi expulso de um outro. Ele nega e alguém diz: - É verdade, eu estava lá e vi. Ao que Lucky responde: - Poderia estar lá e, mesmo assim, não saber o que aconteceu. (...) É a verdade de quem somos e o que fazemos. E você tem que enfrentá-la e aceitá-la. (...) Que tudo vai desaparecer. A personagem fala do caso no outro bar, mas também sobre a sua morte, cuja proximidade é sentida.
Agora, o bar inteiro sabe sobre o que Lucky verdadeiramente fala e a dona do bar pergunta: "E o que fazemos com isso?". Lucky acende um cigarro e responde: "Você sorri".
Lucky também é um filme sobre um homem que sabe que está muito próximo da morte, feito por um ator, Harry Dean Stanton, de mesma idade, com a mesma boa saúde da sua personagem, mas que fatalmente não assistiu à estreia do seu último filme. A partir dessa informação é inevitável assistir a Lucky e não ver Harry. A personagem de Harry tem uma consciência absoluta da própria inconsciência, reconhece, na mesma medida, sua coragem e medo. Cada frase, cada expressão do ator é comovente, embora simples. O diretor estreante, John Carroll Lynch, é um ator experiente, talvez por isso a potência de Stanton tenha sido ainda melhor ressaltada.
Todas as personagens da narrativa são excepcionais e fundamentais para a trama, os diálogos são ternos, profundos, mas não doem, mesmo que a temática não pareça tão palatável em um primeiro momento.
Lucky é um faroeste cujo cowboy tem uma mesma amiga-inimiga, inesperada-certa, enfrentada-temida: a morte. E isto não é terrível. É um filme que nos convoca não a compreender ou a fugir do inevitável, mas convida a pensarmos sobre os nossos dias, relações, sobre os laços que criamos quando ainda somos vida. É uma narrativa para quem gosta das palavras; simples, mas não simplório; sofisticado, sem ser pedante. É um filme para quem gosta de realidade, seja qual for a sua.
Lucky (EUA, 2017)
Direção: John Carroll Lynch
Duração: 88 min.