Sucesso de público

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Lucky - Quanto tempo, ainda, para sermos humanos?

  
Harry Dean Stanton
   Realista: "Apego à realidade, ao concreto; atitude prática de quem encara de frente a realidade, evitando que abstrações ou fantasias intervenham em sua conduta; senso comum, bom senso: enfrentar uma situação difícil com realismo". (Fonte: Dicionário Informal). O significado para esse vocábulo é uma das primeiras descobertas do protagonista, o seu sentido ele irá construir durante a narrativa fílmica.
  Em sua rotina diária, aparentemente tediosa: levantar-se da cama, fazer sua higiene pessoal, se alongar em cinco posturas de ioga, fazer o café, tomar um copo de leite, encher outro e colocá-lo no mesmo lugar daquele que acabou de tomar para tomá-lo no dia seguinte, ir ao supermercado comprar leite ou cigarros e conversar com a caixa, almoçar na mesma lanchonete, enquanto soluciona parte das suas palavras cruzadas, entre  interferências dos funcionários amistosos, regar seu jardim com cactos, desvendar mais palavras cruzadas enquanto um game show passa na TV e terminar sua noite em um bar, cujos frequentadores são sempre os mesmos, há um pequeno acidente doméstico, que interromperá a monotonia e suscitará a maior descoberta da personagem.

  Lucky (EUA, 2017) é um filme sobre um homem nonagenário, cuja consciência da aproximação da morte é evidenciada quando ele sofre uma queda em sua casa. Após uma consulta clínica e exames, o médico avalia que o estado de saúde do homem é perfeita, embora ele ainda fume um maço de cigarros diariamente, o que leva o profissional a recomendar que ele não abandone o hábito."Então, o que eu tenho doutor?", o protagonista interroga, "São as vulnerabilidades da idade", o médico sentencia. Sentado ainda na cama do ambulatório, Lucky fica desconcertado com a realidade revelada. O médico o interroga sobre as condições em que ele vive, se tem companhia, se é casado ou teve filhos e a partir  das três respostas negativas, sugere que Lucky procure um serviço de amparo a idosos. Conta que foi muito importante para o próprio pai este tipo de auxílio. Se apropriando da descoberta do vocábulo que permeia o filme, Lucky indaga: - Onde está seu pai?. O médico responde: - Morreu.
  A primeira consciência: todos morrem, independente das condições. Morrer é inevitável.

  Depois da consulta, Lucky segue seu ritmo habitual, vai até à lanchonete e, sem dramas, comenta sobre a queda sofrida. A partir daí, todas as personagens que compartilham da rotina do nonagenário, também parecem receber a revelação da sua finitude.
  A segunda consciência: independente da saúde, do histórico de vigor e aparente dureza: todos morrem. Morrer é universal.
  Com Howard, um dos amigos do bar, Lucky tem os diálogos mais insólitos e profundos. Quando o amigo perde o seu jabuti de estimação, deixando-o inconsolável, diante da consciência da sua solidão e procura um advogado para fazer um testamento que conceda todos os seus bens ao jabuti, Presidente Roosevelt, quando ele for encontrado, Lucky tem a sua discussão mais acalorada. Acusa o advogado de enganar pessoas fragilizadas e diz a Howard que o final é este mesmo, só, assim como nascer.
  A terceira consciência: morremos sozinhos. Morrer é solitário.

  No dia seguinte, na lanchonete, o advogado numa intenção de se aproximar daquele que o acusou e que o desafiou para uma briga na noite anterior, se aproxima de Lucky e passa a elencar as vantagens de se preparar, burocraticamente, para a morte. "Minha família disca um número, a empresa leva o meu corpo e resolve tudo, minha família só se preocupará em se despedir de mim". Lucky ouve atentamente e pergunta: "Que diferença faz, se você estará morto?".
  A quarta consciência: não preparamos nossa morte, preparamos a vida dos outros para a nossa morte. Morrer não requisita burocracia para quem morre.
  Mais tarde, no bar, Lucky se encontra com Howard, que partilha com ele da seguinte reflexão: de que que a fuga do jabuti só aconteceu, porque ele, o Presidente Roosevelt, tinha um lugar melhor para ir e que talvez ele, com os seus cuidados, sempre estivesse o impedindo."O portão da minha casa vai estar sempre aberto, se ele quiser voltar, sabe onde me encontrar".
   A quinta consciência: prender é matar. Deixar livre é expandir a vida.

  Lucky é um filme que subverte as aparências, tem uma estética de faroeste, mas não é um filme de faroeste; tem um protagonista que calça botas de couro, usa chapéu de cowboy, se embebeda e procura razões para brigar no bar, mas é gentilíssimo; é ex-combatente da segunda guerra, tem voz impostada de um homem durão, poderia ser um xenófobo, mas fala espanhol e se relaciona com muito respeito e proximidade  com os imigrantes com os quais convive; poderia se espantar com os desvios do padrão que ele conhece, mas faz elogios rasgados ao talento de Liberace, um artista da década de 60, cujos figurinos espalhafatosos e o comportamento singular suscitaram rumores sobre a sua sexualidade, em uma época ainda mais limitadora.
  Lucky é um homem que se interessa verdadeiramente pelas pessoas, pelo que não é ele, pelo que é diverso, inusitado, novo. Lucky faz uma confidência a uma visitante inesperada, a funcionária da lanchonete que sente sua falta em um dia que ele não aparece: "estou com medo".
  Sexta consciência: parecer não é ser. A realidade é individual.

  Em um dos diálogos mais fortes do filme, no bar, quando dizem que ele só pode frequentar aquele em que ele está, porque já foi expulso de um outro. Ele nega e alguém diz: - É verdade, eu estava lá e vi. Ao que Lucky responde: - Poderia estar lá e, mesmo assim, não saber o que aconteceu. (...) É a verdade de quem somos e o que fazemos. E você tem que enfrentá-la e aceitá-la. (...) Que tudo vai desaparecer. A personagem fala do caso no outro bar, mas também sobre a sua morte, cuja proximidade é sentida.
   Agora, o bar inteiro sabe sobre o que Lucky verdadeiramente fala e a dona do bar pergunta: "E o que fazemos com isso?". Lucky acende um cigarro e responde: "Você sorri".

   Lucky também é um filme sobre um homem que sabe que está muito próximo da morte, feito por um ator, Harry Dean Stanton, de mesma idade, com a mesma boa saúde da sua personagem, mas que fatalmente não assistiu à estreia do seu último filme. A partir dessa informação é inevitável assistir a Lucky e não ver Harry. A personagem de Harry tem uma consciência absoluta da própria inconsciência, reconhece, na mesma medida, sua coragem e medo. Cada frase, cada expressão do ator é comovente, embora simples. O diretor estreante, John Carroll Lynch, é um ator experiente, talvez por isso a potência de Stanton tenha sido ainda melhor ressaltada.
  Todas as personagens da narrativa são excepcionais e fundamentais para a trama, os diálogos são ternos, profundos, mas não doem, mesmo que a temática não pareça tão palatável em um primeiro momento.
  Lucky é um faroeste cujo cowboy tem uma mesma amiga-inimiga, inesperada-certa, enfrentada-temida: a morte. E isto não é terrível. É um filme que nos convoca não a compreender ou a fugir do inevitável, mas convida a pensarmos sobre os nossos dias, relações, sobre os laços que criamos quando ainda somos vida. É uma narrativa para quem gosta das palavras; simples, mas não simplório; sofisticado, sem ser pedante. É um filme para quem gosta de realidade, seja qual for a sua.


Lucky (EUA, 2017)
Direção: John Carroll Lynch
Duração: 88 min.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

E se essa já for a minha melhor versão?


Greta Gerwig, Laurie Metcalf, Saoirse Ronan


  Esta pergunta, saída de uma cabine de roupas de uma loja de departamentos em Sacramento
(Califórnia), ecoa aqui, ainda. A frase, fragmento de um diálogo entre mãe e filha, aparentemente banal, sem arroubos ou choros descontrolados, está no filme estadunidense, lançado no Brasil em fevereiro deste ano (2018). A comédia dramática "Lady Bird - A hora de voar", está repleto dessas preciosidades singelas, disfarçadas de banalidades. 
  Christine Mcpherson, que se autodenomina "Lady Bird" está no último ano do colégio e o seu maior desejo é sair da cidade onde nasceu. "Mãe, eu pareço ser de Sacramento?", ela pergunta em umas das primeiras cenas do longa metragem para a pragmática Marion. "Você é de Sacramento, isso que importa.", reage sua mãe.
  Para realizar a sua empreitada, de voar para longe de casa e ir para uma universidade fora das proximidades da cidade natal, Lady Bird, filha de uma enfermeira e um homem recém-desempregado, cujas condições financeiras da família parecem limitadas e o seu desempenho escolar mediano não a ajudaria a conquistar uma bolsa, pede a ajuda do pai, Larry, para assinar as requisições de vagas para universidades americanas, que não estejam próximas a Sacramento, já que a mãe está decidida a restringir as solicitações de matrícula para somente uma universidade, menos conhecida e mais barata, na Califórnia.

  Os conflitos mais recorrentes, as emoções mais latentes (entre palavras, silêncios, gestos e olhares) e os diálogos que mais tocam, na narrativa fílmica, ocorrem entre Lady Bird e Marion. Mãe e filha discordam de tudo a todo o tempo. Lady é sonhadora, impulsiva, criativa e egoísta, talvez porque seja jovem, filha de pais mais permissivos (especialmente Larry) e, ainda, imatura ou, talvez, porque seja o que ela já é. Marion é pragmática, controladora, generosa e previdente, talvez porque seja uma mulher de meia-idade, madura e filha de uma mãe alcoólatra e abusiva ou, talvez, porque seja o que ela é desde sempre. No entanto, a trajetória de ambas é conduzida por uma linha de coragem e força, cada uma a seu modo.  Miguel (o irmão mais velho de Christine) e Larry, especialmente, são os coadjuvantes que amortecem os choques entre as duas mulheres.

  Outras personagens e enredos que circundam o seu universo tedioso, segundo a percepção da protagonista, são pequenas pérolas de sensibilidade e reflexões mais profundas. Uma melhor amiga mais resignada ao destino de viver "para sempre" em Sacramento, um primeiro amor cuja sexualidade precisa ser escondida, o acolhedor padre e professor de teatro da escola católica, enfrentando solitariamente (ou como ele diz, na companhia divina) a depressão, o irmão e a cunhada recém-formados, perdidos profissionalmente. Em Lady Bird ninguém tem certezas, todos estão orbitando em torno de algo que pareça dar algum sentido à vida: vaga em uma universidade, carreira, saúde mental, novo emprego, pagar as contas no final do mês, ser amado, ser aceito.

  O filme também aborda de maneira sutil a doença do pai de Lady Bird, de quem ela é muito próxima, que trata de depressão há pelo menos dois anos, mas que ela descobre somente quando encontra os medicamentos, com o nome dele, no banheiro da família. Porque o pai quer poupá-la da informação, que a mãe confirma e ainda sugere que Lady é egoísta demais para perceber as emoções e os problemas do restante da família. Marion é enfermeira em uma clínica psiquiátrica,  a quem o padre, professor de Lady procura. A clareza, a sinceridade e o pragmatismo com que Marion concebe e organiza o seu mundo e daqueles que estão à sua volta são farpas doloridas que entranham sob as unhas de Lady Bird. A rigidez e as recorrentes reprimendas da mãe, dirigidas à jovem são os maiores motivos de conflito entre as duas.

  Quando Lady Bird já está prestes a se formar, a diretora do colégio católico, durante uma conversa, diz  a ela que leu a sua redação sobre a cidade de Sacramento e, a partir da riqueza da sua descrição, percebeu o quanto ela amava a cidade. Lady Bird diz: "Não amo. Eu só presto atenção nela". E a diretora pergunta: "E não é a mesma coisa?".

   Lady Bird e Sacramento; Lady Bird e Marion. Estar atenta não é amar?

  Enquanto Lady Bird experimenta um vestido para o baile de formatura e a mãe a acompanha,  em meio as inseguranças bastante próprias das jovens mulheres, muito estimuladas pela mídia de massa, como a insatisfação com a aparência e a busca por uma identidade própria através de um bem de consumo, após os seus insucessos em conquistar elogios da mãe, Lady pergunta o porquê dela ser tão dura. Marion não parece se surpreender com a pergunta "Eu só quero que você consiga ser a sua melhor versão". E Lady Bird rebate: "E se essa já for a minha melhor versão?". Ambas se calam, somente. Marion é capaz de amar o que a filha já é? E se essa noção otimista que os sujeitos evoluem durante a sua trajetória, basta que se esforcem continuamente, for limitada?
  Lady Bird finalmente consegue voar de Sacramento. Quando a mãe descobre a traição da filha, acobertada pelo pai, ela segue sem conversar com a jovem, mas não contesta a decisão de refinanciar a casa da família para que a jovem vá para Nova Iorque. Lady Bird não desiste de seguir o seu sonho, mesmo que isso comprometa as finanças de toda a família; Marion não se despede da filha com um abraço e um beijo emocionado no aeroporto. E se essas já forem as suas melhores versões? Serão amadas, mesmo assim?        

  É um filme poderoso, dentro de toda limitação de uma só obra, sobre o que é ser, crescer e envelhecer mulher. Não há guerras, não há bombas nem explosões, não há feridas profundas e expostas, mas há  "a dor e a delícia" de não saber o que se é.
  Em uma cena do filme, enquanto Lady Bird discute com o namorado, que acha sua reação demasiada exagerada, a respeito de uma descoberta, e a subestima comparando-a com pessoas em situação de guerra , Lady responde: "Não é porque eu não estou numa guerra que eu não sofro". No universo das dores, sentimentos, afetações humanas, tudo é universal e particular. Todos sofremos, mas cada um de nós tem um repertório também individual.
  O filme não é feminino porque tem como protagonista uma jovem mulher, como coadjuvante uma mulher madura ou uma roteirista e diretora mulher, mas o é porque as sutilezas e as profundidades das personagens femininas não são tratadas como misteriosas, incompreensíveis ou só românticas; são vozes humanas somente. E isto é feminista demais. O filme é uma versão sobre o que é crescer mulher, não sei se é a melhor, mas é uma possível.


Lady Bird - A Hora de Voar (EUA, 2017)
Direção e roteiro: Greta Gerwig
Duração: 94 min.


sábado, 10 de junho de 2017

Furiosa a poesia queima os dias mornos - Paterson


Adam Driver

  Você preferiria ser um peixe? Você preferiria ser uma mula? Você preferiria ser um porco? Ou, quem sabe, você preferiria ser um poeta? Paterson, o protagonista-poeta do filme de mesmo nome não faz escolhas, ele é um peixe, um motorista e um poeta.
   Paterson (2016) de Jim Jarmusch é uma narrativa preciosa sobre o nada, não um nada-ausência, mas um nada a partir da repetição de um cotidiano sem sobressaltos, sem sustos ou excessos, o nada na pós-modernidade: sem perfil em redes sociais, sem celular, sem publicidade.  O filme de Jarmusch é um poema-filme sobre a sorte de um amor tranquilo e a intranquilidade do fazer poético. Paterson é o nome da personagem, da cidade, do ônibus que o protagonista dirige, ele é a cidade, é quem  ocupa o banco da frente do veículo que circula pelas mesmas ruas diariamente, mas  transcende porque não é somente o que esperam dele. O filme é uma narrativa delicada, por vezes, melancólica, sobre paixões que não escapam, ainda que os dias mornos pesem.

  Paterson (Adam Driver) é o motorista de ônibus da pequena cidade, sua homônima, no estado de Nova Jersey, onde também nasceu e viveu  o poeta Willian Carlos Willians, por quem ele nutre grande admiração. Paterson é um leitor contumaz, um poeta das insignificâncias, um jovem de corpo grande, olhos melancólicos, escuta sensível e uma vida atravessada pela poesia; toda ela. Não porque lê ou porque escreve poemas, mas porque vive a aspereza do cotidiano, poeticamente. De uniforme azul, da empresa de ônibus, carregando uma lancheira com as fotos de Laura, sua companheira e de Dante Alighieri, o poeta italiano, andando tímido, pelas ruas pacatas, com pés grandes e sapatos baratos, Paterson é um homem invisível, que não luta contra o seu apagamento, pelo contrário, parece caber bem no papel de quem observa e sente.

  Paterson acorda todos os dias no mesmo horário, sem despertador, beija sua amada, admira-a enquanto ela dorme, faz o café, sai de casa,  conduz vidas, lê as ruas e as pessoas a sua volta, observa e escreve. Um poema começado no café da manhã, persegue-o durante todo o dia. Na volta para a casa, ajeita a caixa de correios, sempre torta e instável, podia ele pregar melhor a caixa e evitar o trabalho diário? Podia. Mas  ele aceita a precariedade no seu quintal e prefere ajeitá-la diariamente, quando volta do trabalho. A vida na casa é provisória, fluída, leve, construída não para ser firme ou durar, mas para ser um enquanto gracioso, que muda mais na forma do que na essência. Aliás, casas são apenas casas ou não?
  À noite, ao chegar em casa, Paterson experimenta um cardápio inusitado que a sua mulher sempre prepara, leva o cão Martin para passear, um buldogue pesado, entediado, toma uma cerveja no bar e volta para casa para dormir, para no dia seguinte recomeçar o mesmo ciclo.
  Este é também um filme sobre a vida para além dos dias da semana e dos ponteiros do relógio. Imerso na banalidade dos dias comuns, ao mesmo tempo no limbo, observando a cidade de um lugar mais elevado, que é a cadeira de um condutor de coletivos. A vida de todos os dias poderia sufocar, mas Paterson tem a poesia e ela o tem.

  Sua mulher Laura (Golshifteh Farahani) é a musa do poeta, mas uma inspiração contemporânea, ativa, sedutora, sonhadora e que partilha com Paterson de uma perspectiva mais criativa e menos ajustada no mundo. O casal aparentemente comum, tem uma vida delicada, permeada de pequenas amorosidades, artes e admiração mútua. Mas são anarquistas nos detalhes, nas escolhas, na relação entre eles e com o mundo, porque são dois seres poéticos que se equilibram entre os sonhos inconstantes e grandiosos dela (rainha dos cupcakes, estrela da música country)  e a obstinação dele (escrever e dirigir ônibus, apenas).  Laura é obcecada pelas cores preto e branco, as paredes da casa, cortinas, tapetes, talheres, roupas, cupcakes, guitarra, em tudo ela imprime a sua marca, logo ela que é tão colorida e alegre, mas estranha quando assistem um filme P & B no cinema. Laura e sua torta de couve de bruxelas e cream cheese; Laura que sonha com o seu amado em cima de um elefante prata na Pérsia antiga, que sonha que os filhos nascem gêmeos e velhos. Laura que estimula e admira a escrita do seu homem; Laura a única leitora possível de Paterson.

  A partir das linhas que Paterson escreve no caderno inseparável, que ele se recusa a fazer cópias, é que conhecemos quem ele é. Nas suas páginas é que ele estabelece e expressa a sua relação mais profunda com o mundo, já que cotidianamente é um homem discreto, pouco expressivo e cujas relações sociais são bastante limitadas.
  O cão, Martin, também é uma personagem importante, pesado, preguiçoso, inexpressivo é ele quem  repousa os olhos empapuçados sobre a rotina de Paterson e, justamente ele é quem também devora os poemas do seu dono, literalmente, que em uma distração do poeta, tem seu único caderno destruído pelo cão. Uma possível analogia com a rotina, o paradoxo da contemplação e do fazer poético, o cão pertence aos dias repetidos, que destrói, tantas vezes as pequenas belezas cotidianas.

  Em um dos seus poemas, "Poema de amor", a inspiração do motorista-escritor é uma caixa de fósforos: "Tão contido e furioso,  obstinadamente pronto/ a queimar em chamas/ acendendo talvez o cigarro da mulher amada/ pela primeira vez… eu me torno o cigarro e você o fósforo/ ou eu o fósforo e você o cigarro/ ardendo em beijos que queimam até o céu". Quando ele descreve o fósforo ele diz sobre ele e sobre a sua vida conformada, até então, em uma ordinária caixa de fósforos. Ele, assim como o fósforo, é tão contido (quando dirige) e furioso (quando escreve), obstinado a arder em chamas.

   Uma das cenas mais tocantes da narrativa é o encontro do motorista-poeta com uma garotinha poeta, ela oferece para ler um dos seus poemas para ele, que aceita e a ouve atentamente. Ambos conversam sobre poesia e ela pergunta se ele gosta de Emily Dickinson, antes de se despedirem, ele reponde que é uma das suas poetas preferidas. Ela se surpreende e sorri:
-  Um motorista de ônibus que gosta de Emily Dickinson!
  Ela acha inusitado, porque ele se apresentou como motorista, além de poeta. Um motorista não deveria gostar de poesia. Ele volta para casa e recita alguns versos da pequena poeta e reflete, pensa sobre eles, com a seriedade e a profundidade que um poema merece. Ele não subestima o poema de uma garotinha, porque não lhe parece inusitado que uma menina também faça, leia ou goste de poemas.
 
  O momento mais angustiante do filme de Jarmusch e que o ator Adam Driver interpreta magistralmente, é a partir da cena em que o casal encontra o caderno de poesias, escritas por Paterson, completamente destruído, sem nenhuma cópia ou arquivo digitado, ele é um poeta sem poemas. E agora, é um poeta, se não tem poemas?
  Ao final, perdido dos  seus manuscritos, Paterson segue para um dos seus lugares de contemplação  e lá tem um inesperado encontro com um poeta japonês que foi conhecer a cidade de Paterson pela admiração ao poeta Willian Carlos Willians. Ele pergunta a personagem Paterson se ele é poeta e ele solta um lacônico:
- Não. Sou apenas um motorista de ônibus.
  Conversam sobre poemas, poetas e escolas literárias e o poeta japonês, ao se despedir, presenteia Paterson com um caderno novo:
- Às vezes, uma página vazia dá mais possibilidades.

  O filme é uma linda exaltação à simplicidade, ao cotidiano reelaborado, vivido às margens dos excessos de produtividade, competição, publicidade, comunicação e expressão vazias, ou quase, de sentimentos. Você preferiria ser um peixe?
  Paterson é um filme sobre as muitas vidas que um ser pode abarcar. Somos aquilo que amamos, não o que fazemos ou o que esperam que façamos. Paterson é uma narrativa poética que amplia a nossa responsabilidade de estar no mundo, o nosso compromisso de habitarmos mais de um mundo, sem medo e atendermos aquilo a que somos chamados a fazer passionalmente, mesmo que isso não pague o nosso aluguel nem nos ascenda ao estrelato.
   É um poeta, se não tem poemas?  É um poeta, porque tem a poesia.



 

sábado, 9 de julho de 2016

A resistência elegante de Cabíria


Giulietta Masina

   Não importa quanto tempo tenha desde a última vez que as vimos, nem interessa tanto o contexto em que elas se apresentaram, às vezes, perdemos até o restante da narrativa, mas algumas personagens se inscrevem num lugar de nós, para jamais se perderem. E vão conosco pela vida, frequentam nossas memórias como um alguém muito próximo, que admiramos, gostamos, sentimos saudades até, como se em algum momento tivéssemos compartilhado partes das nossas vidas com elas. E passam a ser para nós, a materialização de algum sentimento nosso. A Cabíria, de Giulietta Masina, é para mim a resistência mais elegante, a personagem que me emociona sempre, a toda revisita. É a esperança que não cessa de renascer para sempre. O filme de Felinni, de 1957, "Noites de Cabíria", foi quem me deu a personagem, me fez gostar dela já nos primeiros minutos da narrativa, me conduziu a um caminho de emoção a cada perda e possibilidade de reviravolta na vida de Cabíria e, finalmente, fez os olhos marejados dela se prenderem na minha lembrança.

  Cabíria é uma jovem italiana, do interior, que após a perda dos pais, se prostitui na suntuosa Roma. Na primeira cena do filme, enamorada, ela passeia com o seu amante, trocam um beijo apaixonado, até ele empurrá-la para um rio, para roubar sua bolsa. Cabíria é salva por crianças que presenciam a sua queda e pelo esforço de moradores da região, que a retiram da água, antes dela seguir para o esgoto. Os homens ainda lhe prestam os primeiros socorros, quando ela recobra a consciência e sai em busca do namorado, sem entender como chegou a se afogar. A ingenuidade de Cabíria  é desconcertante. Somente quando volta para casa e a vizinha Vanda - sua amiga, confidente, colega de trabalho e consciência - desvenda o mistério da queda é que Cabíria entende que a queda não foi acidental e que o amante não retornará. Cabíria foi enganada e tem raiva do homem e de si mesma que chegou a acreditar no seu amor. Mas a raiva não dura, a vida pede urgência e logo ela volta ao trabalho.

  Na casa simples, da qual tem muito orgulho em ser proprietária, conhecemos uma Cabíria frágil, sonhadora e solitária. Na casa distante do centro opulento de Roma, Cabíria guarda suas memórias, alguns poucos bens que adquiriu, dos quais se orgulha muito, e aprisiona a esperança que, frequentemente, esconderá para não ser alvo de chacota. A Cabíria da noite é saltitante, é mais segura e parece vestir a armadura da realidade para que o sonho não a derrube mais. Mas os olhos de Cabíria não mentem, ela é uma sonhadora e esperançosa eterna.

  O filme se desenrola em torno de pequenos episódios, que nos revelam a dureza da vida de Cabíria e, a um mesmo tempo, a leveza dos seus grandes olhos para a vida repleta de adversidades. Há uma sequência em que o acaso a leva até a mansão de um famoso ator italiano e ela parece, finalmente, viver um sonho com tranquilidade, até a súbita interrupção, em que ela é acordada do sono e retirada do sonho bom. Em uma das madrugadas, quando volta para casa depois do trabalho, Cabíria conhece um benfeitor que ajuda os moradores de cavernas da região, por onde ela passa. Ela pede carona, já que volta a pé e o caminho é longo, ele concorda, mas só o fará quando terminar de fazer suas doações. Cabíria segue o homem, se emociona em cada visita, reconhece uma das moradoras, antiga colega de profissão e se emociona com a miséria, que é maior que a dela e com a dedicação do homem em salvar a vida daqueles que ninguém mais se preocupa. Ela volta para casa com o desejo latente de mudar de vida.O encontro com o homem, a imagem da miséria, a solidariedade que ela assistiu, tudo é tão perturbador, que Cabíria roga ao divino por uma mudança.

  Mas Cabíria tem urgência e não conhece a paciência cristã, desiludida com a própria fé, depois de uma viagem a um santuário, ela entra em um teatro e acaba escolhida para participar de um espetáculo de hipnose. Em transe, os sonhos de Cabíria vêm à tona, se apresentam em público da maneira mais doce e emocionante. A independência, a dureza, toda a máscara de realidade, sucumbe à voz do ilusionista, aos comandos e a cena dirigida por ele. No episódio mais emocionante do filme conhecemos a Cabíria que não morreu na miséria, nas perdas, nas noites difíceis, nas desilusões sucessivas, na negação do amor verdadeiro, na Roma que a humilha nem na miséria da qual ela tenta se afastar. É lindo ver o sonho de Cabíria; é emocionante ver sua máscara abandonada no palco. Mas depois da sequência, ela ainda viverá a dor da entrega, da ingenuidade e da sua crença e desejo de amor.

Cabíria, mesmo com todos os cuidados de alguém a quem muito maltrataram, volta a acreditar que a nova vida sonhada está se realizando. Se despede de Vanda, sua consciência mais plena e relação mais afetuosa, vende seu maior bem, a casa da qual se orgulha tanto e segue para seu recomeço, que não se realiza.

  Mas mesmo depois de perder tudo, de quase ser morta e, mesmo de querer estar morta, Cabíria se ergue. E com ela, levantamos também. Porque não conhecemos a potência da nossa força até sermos convocados a ela. A dor nos leva ao chão, as perdas nos fazem querer desistir, mas há um momento, num lugar que não conhecíamos que uma quentura de esperança nasce e se espalha por todos os  membros do nosso corpo, quase congelados. Então voltamos, quentes, a acreditar na próxima curva.  Afogar Cabíria, enganá-la, roubá-la, rir dela, nada é capaz de destruir a sua esperança em uma coroa de flores e passeio no jardim de mãos dadas. Por isso, a cada  desengano, lembro-me de Cabíria e os sonhos dela embalam, um pouco, os meus.  Na resistência elegante de Cabíria, nos reconhecemos enganados e sonhadores. Na próxima esquina pode estar o sonho e se não estiver, vamos a outra.


As noites de Cabíria - Itália, França (1957)
Direção: Frederico Fellini
Duração:115 min.



domingo, 21 de fevereiro de 2016

Não abandone Lili - A Garota Dinamarquesa


Alicia Vikander e Eddie Redmayne

  Qual o meu melhor lado na fotografia? Que palavra você quer me ouvir falar agora? Prefere a minha voz mais suave ou posso ser grave? Com o que em mim você se relaciona mesmo? Que partes de mim você pensa amar? E se eu só for amada pelo que nem sei se sou ou por um fragmento que talvez nem desejo mais manter? A que custos permanecemos sob a mão, ao mesmo tempo, afável e austera do amor? Do quanto abrimos mão para sermos amados, admirados ou, simplesmente, aceitos?

  "A Garota Dinamarquesa" (2016) é uma narrativa sobre a busca da identidade mais profunda, algo que somos impelidos a negar, que nos negam,  mas que precisa muito, algum dia,  emergir, para só assim, dizer quem verdadeiramente somos. O filme dirigido por Tom Hooper, baseado na biografia de Lili Elbe, a primeira mulher transexual  a se submeter a uma cirurgia de transgenitalização, que se tem registro no mundo, é um drama que aborda sobre o quanto pode ser doloroso a revelação de algo que para nós é essencial, mas para o outro parece ser desconfortável, incompreensível e egoísta. Einar Wegener é um pintor dinamarquês, com algum prestígio local, casado com a também pintora Gerda, cuja relação de extrema cumplicidade talvez seja o impulso, que a sua identidade negada, encontrará para deixar que Lili finalmente nasça.  

  Lili Elbe é a essência, implorando por socorro, gritando para não ser sufocada, mesmo que desagrade, que subverta lógicas, mesmo que ao resgatá-la precise enterrar o outro a quem aprenderam a amar. Lili é a identidade que incomoda, que inadaptada sofre com olhares do mundo, com a brutalidade dos que concebem o outro a partir das suas próprias expectativas. Lili é a garota dinamarquesa frágil, sensível e completamente vulnerável, que precisa muito lutar para não voltar para as profundezas de uma alma tão requisitada.

  Na jornada para a afirmação de Lili, ela encontrará em Gerda o amor incansável, o único que irá até o fim, por cumplicidade, comprometimento e um tipo de entrega a que bem poucos estariam dispostos: ver seu amor morrer (Einar) e dar lugar a uma desconhecida. Gerda é a primeira, depois da própria Lili, a reconhecê-la como mulher e ainda que saiba de todos os riscos de uma cirurgia pioneira, será ela a segurar as mãos de Lili em cada dor, das do corpo e principalmente das subjetivas.

  A Garota Dinamarquesa é a luta de alguém para ser o que é. Parece inusitado, mas é isso: a tentativa desesperada de encontrar-se com o que já reconhece em si, mas é estranho ao mundo. O filme tem uma narrativa por vezes arrastada, mas nos diz muito, especialmente pelos olhos melancólicos de Eddie Redmayne (o ator que interpreta Lili), que nos suplica para que não deixemos a garota morrer. Há em todos nós uma garota dinamarquesa que sussurra por vida, que perde um pouco mais de fôlego e força quando fazemos concessões do que somos, esperando amor. Lute pela Lili sublimada, cerceada, calada e invisibilizada que mora em você e respeite, aceite, ame a Lili que o outro também carrega. Não desistam da sua garota dinamarquesa, não há amor que preencha a ausência da própria identidade.


A Garota Dinamarquesa - EUA, Reino Unido e Alemanha (2016)
Direção: Tom Hooper
Duração: 120 min.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Seja inteira, diria Carol - sobre o filme Carol

  
Cate Blanchett e Rooney Mara

  Os nossos relacionamentos amorosos dizem muito do que somos. Os fins, o tempo de duração, as insistências eventuais ou as desistências prematuras, as lembranças que permanecem ou aquelas que juramos apagadas, mesmo quando ainda ardem dentro. Dizem sobre nós mais do que podemos confessar, desabafar, confidenciar ou levar para a análise, falam por nós no que temos de mais incontrolável, primitivo e puro. "Carol" (EUA, 2015) é um filme-espelho porque aponta o quanto todos nós estamos vulneráveis quando amamos. Carol Aird (Cate Blanchett) é um mulher forte, segura, senhora das suas decisões, uma dama burguesa que assume e sustenta, a altos custos, a escolha por um divórcio em plena década de 50, mesmo assim sucumbe quando ama. Se vulnerabiliza, perde o rumo, se confunde em decisões, a princípio, muito claras. Aird se torna o ser mais desamparado do mundo, mesmo nadando em um mar de profunda paixão; e talvez esse mar só acentue essa sensação de impotência.

  Carol Aird está em meio a um processo de divórcio, tem uma filha pequena, por quem sua delicadeza e suavidade emergem em cena - já que aparência pública de mulher sisuda é a mais recorrente -  tem uma amiga de infância com quem se relacionou amorosamente enquanto seu casamento já parecia sufocar, enfim,  Carol é uma mulher com história. A sua ida a uma loja de departamentos para comprar um presente de natal para a filha a levará ao encontro da imprevisibilidade de uma paixão.

 No balcão da loja,  constrangida ao ser obrigada a  usar um gorro de papai Noel, está a tímida Therese Belivet (Rooney Mara)  uma jovem sem o brilho e a altivez de Carol, vivendo a insegurança de um futuro que não consegue sequer vislumbrar e enredada por um relacionamento com um namorado que parece estar muito mais comprometido em um futuro com ela do que ela com ele ("eu mal consigo escolher o meu almoço", ela diz.). O encontro, que poderia ser ordinário, é o início de uma sucessão de descobertas: de outros olhares, cenários, possibilidades, das limitações e das superações de cada uma delas.

  Carol e Therese são arrebatadas,  desde a troca inicial de olhares, uma pela outra e sob as diferenças que as separam (personalidade, idade, classe social, perspectivas), o controle social do qual serão alvo (porque se a ideia de um relacionamento homossexual ainda hoje é passível de agressões, nos mais diversos níveis, nos anos 50 a questão é de ordem jurídica até) elas se entregarão, ao que para ambas, se mostrará um caminho tortuoso de escolhas, desafios sucessivos e muito crescimento, especialmente para Therese, cuja trajetória parece um pouco mais limitada de repertório. Carol tem mais histórias e mais riscos, porque tem uma filha e lida com a perseguição do marido, que não aceita o divórcio e, ainda, deseja castigá-la pela sexualidade que ela  opta por viver em liberdade e plenitude. Carol não esconde do ex-companheiro seus relacionamentos e ele que conhece a fragilidade maior dela, tenta feri-la afastando-a da filha, para então, dissuadi-la de assumir uma parte da sua identidade com a qual ela é profundamente comprometida.
   
  "Carol" não é um filme sobre amor ou sobre um relacionamento fora das expectativas sociais; "Carol" é um filme sobre a imprevisibilidade do amor e as escolhas que fazemos a partir dele. Carol Aird faz um escolha sofrida , mas também decisiva e a faz porque deseja oferecer o melhor também para sua filha. E ela explica sua escolha com a frase "Que tipo de mãe eu seria, se não pudesse oferecer a minha filha o que sou por inteiro?". O filme fala sobre o quanto  amar é mais do que um amontoado de afinidades, respeito a convenções ou acordos subjetivos, amar implica em grande coragem, oferecer ao amado e a quem nos ama aquilo que somos por completo, mesmo que seja na inteireza das nossas fragmentações.

  "Carol" é um filme sobre muitas coisas: imprevisibilidade do amor, o controle social dos corpos e o desafio a ele, as estruturas que tentam acobertar os desejos, os afetos na sua diversidade, mas é um filme, essencialmente, sobre o quanto estamos comprometidos, ou não, em sermos inteiros para nós e para quem amamos.

Carol - EUA/ Reino Unido (2015)
Direção: Todd Haynes
Duração: 118 min.

Baseado no livro "The Price of Salt" - Patricia Higsmith (1953)



quinta-feira, 30 de julho de 2015

"A História da Eternidade" - ou a história de todos nós

  
Débora Ingrid (Alfonsina)

  Qual o caminho para a eternidade? Onde nos instalamos, depois que a vida nos abandona? Em que lugar permanecemos depois da inevitável partida? Ou isto aqui é tudo? Então, passamos? E só? Não pode. Não aceitamos o final sem vestígios; nunca.  A história de todos nós passa inevitavelmente pela necessidade de permanência, mesmo quando a vida caminha para a despedida. E por isso buscamos, desesperadamente, sermos amados, notados, ouvidos, vistos, ao menos por uma fração mínima de segundo da vida, buscamos algo ou alguém em quem nos eternizarmos. E quando isto acontece é sublime, é a constatação plena de existência; existo porque o outro me vê, me tem. Se reparto, se deixo alguma marca, não parto definitivamente.

  "A História da Eternidade"(2015), é um filme singelo, despretensioso aparentemente, contudo é perturbador, altamente profundo e muito poderoso. Pois coloca na tela o medo, a angústia, os nossos sonhos e segredos mais interiores, utilizando personagens culturalmente específicos, mas que são capazes de abarcar toda a poesia sobre o enfrentamento que a condição humana nos requisita. No sertão profundo, três personagens universalizam tais questões humanas. Em um ambiente inóspito ao feminino, numa sociedade marcadamente machista, três mulheres sertanejas serão as grandes responsáveis pelos rumos da história do vilarejo que compartilham. 

  Alfonsina é uma adolescente de quinze anos, que na ausência da mãe, assume todos os trabalhos domésticos, além dos cuidados com o pai e  com os quatro irmãos. A menina sonhadora, de rosto angelical,  que sonha com mar é fortemente influenciada pela relação afetuosa e de identificação que mantém com  um tio epilético; um artista amador, cuja arte não cabe no vilarejo tão apequenado para as linguagens subjetivas e quase não cabe em si, pela saúde fragilizada e obstáculos que precisa enfrentar em defesa daquilo que ele é. Querência é uma mulher de meia idade, que acaba de enterrar um filho pequeno, ser abandonada pelo marido e que em meio a dor e a escuridão (a casa de janelas e portas cerradas) precisa lidar com as investidas de um sanfoneiro com deficiência visual, que a persegue. Querência parece não suportar, ainda, o tamanho do amor que o sanfoneiro está disposto a oferecer a ela. A outra personagem é Das Dores, uma mulher de setenta anos, devotada à igreja e aos problemas de cada morador da vila, que solitária, depois da morte do marido e da mudança dos filhos, recebe um neto em fuga. A visita do rapaz despertará em Das Dores  desejos recônditos e sublimados por décadas, o que a colocará frente a uma desordem moral e, ao mesmo tempo, muito natural -  fruto da sua solidão e carência. 

  As três personagens viverão conflitos bastante específicos e a narrativa desenvolverá as ações de cada enredo numa dimensão muito íntima, quase particular, mas ao mesmo tempo, sempre passível de identificação e projeção. Além das protagonistas, a personagem do tio de Alfonsina, Joãozinho, trará o peso da subjetividade em meio a uma sociedade  árida, dura e incompatível com as questões da alma. Neste caso, a leveza do artista pesa, incomoda e gera grande parte das lutas interiores de cada personagem. 

  A fotografia da obra é um deslumbre, as tomadas da câmera delicadas e a trilha sonora muito emocionante, todas em sintonia, para assinalar um sertão muito rico em beleza e poesia. O sonho de Alfonsina proporcionado pelo tio é um dos mais sublimes, além da performance do artista vocacionado na música de Ney Matogrosso. 

  Ao final, cada uma das personagens guardará, sob o peso de perdas e escolhas, um pouco da eternidade de outras vidas. O filme, além dos medos e angústias,  é, também, sobre marcas, memórias e sonhos. Ninguém de nós passará, seja qual o vilarejo em que nos instalamos, incólumes a dureza que é viver. Também não seremos nunca a poeira cósmica para sempre desaparecida, em algum momento nos prenderemos a uma outra vida, nem sempre por escolha nossa. A eternidade é possível, não a imaginada, mas outra, que acontece enquanto nos perdemos em desejo, sonho e coragem súbita.


A História da Eternidade ( Brasil, 2015)
Direção: Camilo Cavalcante
Duração: 120min.