Sucesso de público

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Eu tô falando de amor e não da sua doença..." - The Normal Heart

  
Mark Ruffalo

  Os olhos mais brilhantes, a coragem mais desconcertante, a ideia mais persistente, assim como as palavras mais atrapalhadas e, ao mesmo tempo, mais certeiras são, sem qualquer vestígio de dúvida, as de um apaixonado. Paixão é fome e fome jamais pode ser sublimada ou ignorada, porque tem urgência, não é como amor, sonho ou sexo que, por vezes, esperam firmes o momento de realização. A fome não aguarda, ela começa no agora e só termina na satisfação urgentemente consolidada; é a exigência biológica que se não satisfeita pode parar um corpo, ceifar uma vida. A fome não nasceu para esperas, ela é a medida mais grave da urgência.

  "The Normal Heart", o filme estadunidense, adaptação do teatro e produzido para TV é, sobretudo, um filme sobre o poder altamente redentor e, por vezes vezes, destrutivo da paixão. Need Weeks (Mark Ruffalo) é a materialização dessa contradição poderosa de uma forma corajosa de viver - é doce, terno, apaixonante e também  tenaz, ácido e implacável -  um homem impulsionado, dirigido (tantas vezes descontroladamente) pela paixão, nas suas mais diversas formas, todas elas passíveis de justificativa, compreensão e, especialmente, admiração.

  Início da década de 80, em plena liberação sexual gay, uma doença misteriosa e fatal, que vitima especialmente homens gays e por isso, passa a ser conhecida no meio médico como "câncer gay" é o fio condutor da narrativa, dirigida por Ryan Murphy. A doença desconhecida e, inicialmente, ocultada dos grandes meios de comunicação é posteriormente motivo para uma histeria e segregação de um grupo culpabilizado pelo seu aparecimento. Need Weeks, escritor e ativista social é o homem que não sucumbirá ao medo, vergonha ou ao terror do desconhecimento e possibilidade de contaminação. É a voz que não se cala, mesmo quando ninguém quer ouvir. 

  Em uma trajetória comovente, o homem das paixões despertará a ira de autoridades, gays enrustidos e até dos membros do seu próprio grupo de amizade e luta. Porque Weeks é um homem faminto, rejeita diplomacias que só atrasam a descoberta e a luta pela sobrevivência de cada conhecido infectado, desobedece as regras, rejeita burocracias, preconceitos e as individualidades que atravancam os caminhos para a luta. Weeks tem a fome e a coragem de um guerreiro; "pero sin  perder la ternura jamás". 

  Há também muito amor, atravessando toda a narrativa, o combate em "The Normal Heart" é bordado em um bastidor de afeto e luta pessoal pela aceitação do que se é, mesmo que isto tenha tantas vezes afastado o escritor dos seus amores mais profundos. A relação com o irmão mais velho é conflituosa, mas emocionante, terna e de uma profundidade invejável; a sua amizade, nascida a partir de uma paixão platônica pelo galã Bruce Niles (Taylor Kitsch) é perpassada pelas diferenças ideológicas e, por isso, haverá mágoa, dor e rupturas, como só as grandes amizades são capazes de suportar (ou não); a relação de descoberta e admiração com a médica Emma (Julia Roberts) uma aguerrida pesquisadora da doença, que dará a dimensão merecida aos casos e os tratamentos mais humanizados aos seus pacientes é quase maternal (ambos exercem os dois papéis, ora mãe, ora filho);  mas a maior força e também a vulnerabilidade mais emocionante de Weeks será sua relação amorosa com o apaixonado Bommer.

  Pelo amado, Weeks se tornará um guerreiro ainda mais combativo e, ao mesmo tempo, desesperado. A fome do ativista será mais latente e urgente, quando descobrem que o companheiro também está infectado; a corrida agora passa a ser contra o tempo, tempo que corre, quanto maior o desejo de torná-lo estanque.  O amor quer eternidade, a luta pede combate, mas a doença não concede o tempo para ambos; Weeks não tem escolha, ele tem fome de luta e amor e a sua urgência é bonita, mas altamente dolorosa. 

  O filme mostra a aspereza de uma sociedade egoísta, radical e altamente preconceituosa, que culpabiliza vítimas, segrega as minorias e oculta suas próprias mazelas, apontando tudo aquilo que soa, em seus ouvidos acostumados a um só ritmo, como desajustes alheios; acompanha a saga de um militante que propõe essencialmente a aceitação própria de cada sujeito e que, faminto e passional, se atrapalha em um mundo rodeado por muros racionalizantes e individualistas. Mas o filme também traz a singeleza de um amor breve e infinito, o laço que enternece um combate altamente desgastante e duro. Em tempos onde as ideologias normativas, segregacionistas e reacionárias tentam conter as diversidades e as vozes nos seus tons mais diversos, o filme é um tratado sobre o quanto apaixonar-se por uma causa é bonito, também inegavelmente doloroso, mas é a beleza maior de uma vida. E mesmo que doa, mesmo que digam que é errado e queiram te ferir pelo que você é; não é doença, é saúde maior, porque é amor.    



The Normal Heart ( EUA2014)
Direção: Ryan Murphy
Duração: 114min.