Sucesso de público

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quando o belo não é tão certo - Sobre "Biutiful"

Javier Bardem

  Imagine descobrir que tem poucos meses de vida, é o único responsável por dois filhos pequenos, frutos de uma relação conturbada, cujo parceiro é mentalmente instável. Imagine ainda, que sua renda seja proveniente de uma série de trabalhos ilegais e por isso completamente inseguro e que ainda que você trabalhe por horas a fio, o dinheiro é pouco e a instabilidade é total. Pense ainda que o seu meio social é altamente desestruturado, pouco confiável e inseguro. Que herança deixará para seus filhos? O que você ainda poderá fazer por eles? 

  Este é apenas o mote inicial para a construção do belíssimo "Biutiful (2010)". Em uma sinopse rápida, daquelas que vem atrás do DVD, poderia levar o espectador imaginar que é meramente um melodrama familiar, mas o mexicano Iñárritu não é um diretor de obras assim tão "simples". Visto seu histórico que contemplam, entre outros, "Amores Brutos" (2000), "21 gramas" (2003)  e "Babel" (2006). 

  Na obra de Iñárritu o drama pessoal dos personagens estão intimamente ligados ao drama de toda sociedade, afinal, existimos somente a partir das nossas interações com o meio social e mesmo geográfico. Aqui, especificamente, vivenciamos a estreita relação do protagonista Uxbal (Javier Bardem) com a sua cidade, Barcelona, o lugar pouco acolhedor para o estrangeiro, especialmente o ilegal, é onde Uxbal ganha a vida; Uxbal é mais que urbano, suas variadas interações tornam-o a própria cidade. Além de explorar o trabalho de imigrantes africanos,  como vendedores ambulantes, ele ainda entra em negociatas escusas para empregar ilegalmente chineses na indústria têxtil e construção civil. A derrocada do anti-herói de Iñárritul terá seu auge, de maneira extremamente dramática, quando seus "negócios" sofrem trágicos reveses. Neste momento, assistimos o "empresário" se humanizar ainda mais diante da dor e do sofrimento alheio. O homem que explora a mão-de-obra estrangeira é também um homem cuja empatia pelo outro não é esquecida.

  A estética escolhida pelo diretor mexicano é muito realista, as imagens são "sujas", com lugares mofados, pichados, pinturas desgastadas, ambientes claustrofóbicos, lixo, desordem. E tal escolha possibilita ao espectador compartilhar com Uxbal um pouco do seu desconforto, sua dor (tanto a física quanto a da alma). 

  Ainda há, no filme, alguma perspectiva mística, pois Uxbal comunica-se com os mortos. Logo no início da narrativa, o espectador é apresentado a essa faceta do protagonista. Testemunhamos Uxbal receber pequenas contribuições monetárias pelo serviço, ainda que seja orientado a não fazê-lo pela sua mentora espiritual. Ele até compreende a orientação, mas não segue, porque suas necessidades terrenas parecem muito mais urgentes.

  O homem "acostumado" a morte, foge dela grande parte da narrativa, corre contra o tempo. Precisa de dinheiro, de alguém confiável para cuidar dos seus filhos, deixar uma vida organizada antes de partir. Mas, conseguirá em meses, o que não conseguiu uma vida inteira? Uxbal dependerá de desconhecidos, logo ele que conhece a "sujeira" do mundo, seu universo é um emaranhado de ilegalidades, droga, álcool, relações doentias, corrupção, exploração; em quem Uxbal poderá confiar? 

  O nome do filme "Biutiful", da ortografia errada da palavra inglesa beautiful, tem origem em uma cena simplória e ao mesmo tempo comovente, em que ele ensina a lição de casa para a filha mais velha. Uxbal não é um herói, não é um pai ideal, profissional, nem ao menos místico ideal, mas tenta a todo custo acertar, principlamente no papel de pai. Ele erra na lição, erra na vida, mas deseja ter a chance de deixar algum legado, alguma segurança aos seus herdeiros. O filme de Iñárritu é inquietante, triste, melancólico, propõe discussões sociais doloridas, mas é bonito, de uma forma diferente, mas ainda assim muito belo. A beleza de "Biutiful" está em compreender que mesmo da maneira menos ortodoxa e clássica, por amor, desejamos sempre acertar. Nós, Uxbal e tantos outros erramos todos os dias, mas, pelo menos aqui, o diretor mexicano acertou muitíssimo. Este é um filme para quem não teme a beleza escondida, não-clássica, a beleza que esconde-se sob os erros, a única realmente verdadeira.


"Biutiful" (Espanha/México - 2010)
Diretor:Alejandro Gonzalez Iñárritu
Duração:147 min.


terça-feira, 20 de novembro de 2012

A cor da liberdade - sobre "A liberdade é azul"

Juliette Binoche
 
  Da trilogia das cores, do polonês Krzystof Kieslowski, que faz uma analogia entre as cores da bandeira francesa e o forte lema de sua histórica revolução: "Liberdade, igualdade e fraternidade". "A liberdade é azul", é, para mim, o mais tocante. Delicada, fortemente introspectiva, a obra de 1993, convida-nos a um exercício de profundo, melancólico, assustador, mas também libertador abandono.
A estória do filme se passa na França contemporânea e tem como protagonista a bela Julie (Juliette Binoche, simplesmente divina no papel que rendeu-lhe os prêmios : Leão de Ouro, Cesar e uma indicação ao Globo de Ouro).

  Julie é uma jovem mulher, cuja vida parece estabelecida e muito bem sucedida, até perder em um acidente trágico de carro, o marido, um compositor muito famoso e a única filha ainda pequena. Após as perdas Julie se desespera e constata depois de uma tentativa frustrada de suicídio sua completa fragilidade, inclusive para ceifar a própria vida. Deprimida, chocada e completamente perdida, Julie ainda enfrentará descobertas que a levará para um lugar completamente desconhecido dentro de si mesma. O amado marido, antes livre de qualquer suspeita de traição ou infidelidade, deixa uma amante grávida, que julie virá a conhecer, o que desperta na personagem a desconfiança de ter vivido uma ilusão, uma vida diferente da que imaginava ter, com alguém que aos poucos, depois de outros indícios, não conhecia tão bem. A bela mulher terá de conviver com suspeitas, comprovações surpreendentes, com a solidão e, principalmente, com o desmoronamento contínuo de uma série de crenças e a descoberta de uma nova maneira de viver.

  As cenas aparentemente comuns de Julie tomando um café em um bar (com sorvete de creme), procurando um novo apartamento, observando um mendigo na rua, chorando entre os muros do condomínio nobre, em um mergulho profundo na piscina da academia, despedindo-se dos objetos de uma vida inteira, são sensíveis, poéticas e sutilmente "coloridas" de azul. Mais tarde, o flautista de rua aconselha que Julie precisa se prender em algo ou alguém. Mas, mais madura, compreensiva Julie só deseja se libertar da vida passada, da dor e, principalmente de tudo o que foi e nunca mais voltará a ser.

  "A liberdade é azul" é um pequeno, mas crucial retrato da verdadeira libertação. Não há liberdade sem dor, sem sucessivos abandonos: abandono de objetos, pessoas, sentimentos, valores e crenças. Abandonar, ainda que depois de muito choro, choque e café francês é a única saída para um vislumbre mínimo, que seja, da tal liberdade. Indico o filme, outras tantas obras do polonês (principalmente a trilogia, "A igualdade é branca (1993)" e "A fraternidade é vermelha" (1994)) e, mais, sugiro reflexão. Porque até para ser tocado, é preciso alguma liberdade.


"A liberdade é azul" (Suiça, Polônia e França, 1993)
Diretor: Krzystof Kieslowski
Duração: 97min.